Ninhos de harpia são encontrados em reserva no sul da Bahia

Jaílson de Souza

A cena é inesquecível: ao subirmos em um amanhecer na torre de 50 m na RPPN Cristalino, em Alta Floresta, norte do Mato Grosso, sul da Amazônia, fomos surpreendidos com a floresta em rebuliço. As copas das árvores se mexiam nervosamente e os macacos-aranha-de-cara-branca, espécie de primata endêmica da região, davam o alerta: era onça ou harpia na área, logo dá o veredito o experiente guia Jorge Lopes, do Cristalino Lodge, que estava conosco.

Com a luneta, Jorge pode confirmar a presença distante da harpia, o gavião-real (Harpia harpyja), temido rapinante que, por seu porte e força, ocupa a cadeia alimentar da floresta. Assim, como a onça pintada.

Os dois animais têm mais um ponto em comum: encontram-se ameaçados. A harpia faz parte da Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação (UICN), onde está na categoria de Quase Ameaçada. Talvez, por ironia, justamente por sua beleza e posição no ranking dos predadores.

Ou por ignorância e superstição: aprendo no WikiAves que “reza a lenda na floresta que a ave de garras afiadas ataca pessoas e come crianças, o que estimula a matança”. Outros graves fatores de redução desta e de outras espécies de animais silvestres são a redução de habitat, o avanço da fronteira agrícola e da retirada de madeira para a venda é outro fator de risco, uma vez que a espécie precisa de grandes áreas preservadas para sobreviver e só entrelaça o ninho nas árvores mais ascendentes.

Pois não é que sou informada pela assessoria de imprensa da Veracel, empresa de celulose formada pela brasileira Fibria e pela suecofinlandesa Stora Enso, que dois ninhos de harpia foram encontrados recentemente na RPPN da empresa, que ocupa uma área que abrange os municípios de Porto Seguro e Cabrália, no sul da Bahia? O feito é para se comemorar, porque há poucos registros de sua presença no bioma mata atlântica, estando mais presente na Amazônia e no Cerrado.

“Trata-se de uma ave extremamente rara na mata atlântica”, explica a bióloga Virgínia Camargos, coordenadora da RPPN Estação Veracel, comemorando a descoberta dos ninhos. “Encontrar esses ninhos tem um enorme significado para nós, porque é o resultado de todo um trabalho de preservação feito ao longo dos 20 anos da Estação Veracel”, diz, orgulhosa.

Dias mais tarde, vejo no Instagram uma foto linda do Ciro Albano de uma harpia em outra reserva no sul da Bahia e aprendo que, na mata atlântica, é onde elas hoje encontram refúgio.

A Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) da Veracel foi criada em 1996 e reconhecida por portaria governamental dois anos mais tarde, completando 20 anos de existência oficial em 2018. Ocupa 6.069 hectares de floresta em estágio quase primário, segundo Virgínia, em uma região em que a mata atlântica é muito fragmentada. “Trabalhamos para fortalecer a conexão do corredor da reserva da Veracel com o Parque Nacional  do Pau-Brasil, que tem 19 mil hectares”, conta.

Na reserva da Veracel, funcionava inicialmente um centro de reabilitação de animais, que um dia recebeu uma harpia resgatada do tráfico ilegal de aves. “Ninguém sabia como lidar com a harpia e surgiu a ideia de tentar reabilitá-la para que retornasse à vida silvestre”, conta Virgínia. 

Mas a soltura não é tão simples assim e envolve uma série de estudos e ações. Especialmente no caso da harpia, que necessita de uma área de 50 km quadrados para viver, no caso florestas tropicais. Trata-se da maior ave de rapina do Brasil: do bico à cauda mede quase um metro, sendo que quando suas asas estão abertas, a distância entre suas pontas pode chegar a dois metros.

Inventário

Cristina Rappa

Assim, foi realizado um inventário do fragmento florestal da região, para saber se ele suportaria a presença da harpia, espécie que ocupa o topo da cadeia alimentar das nossas florestas, predando mamíferos de mais de 6 kg, como macacos (como o aranha-de-cara-branca, da foto à esquerda), preguiças e cachorros do mato, além de répteis e aves de menor porte. Como o resultado foi positivo, teve início o projeto de reabilitação da ave.

Surgia aí o Projeto Harpia na Mata Atlântica, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Amazônica (INPA) em parceria com a Estação Veracel, e que até agora já reabilitou três harpias, devolvidas posteriormente à natureza. Após sua soltura, as aves passaram a ser monitoradas por telemetria de satélite.

No início deste ano, funcionários da começaram a escutar e até a avistar uma harpia, mas não tinham como afirmar que se tratava de uma das libertadas pelo Projeto. Em março, ao examinar as imagens das câmeras fotográficas (camera traps) instaladas nas copas das árvores, puderam ver a majestosa ave tomando banho em uma poça d’água.  

Tânia Sanaiotti, bióloga  do INPA e uma das responsáveis pelo Projeto Harpia na região, foi chamada, e constatou a presença de um ninho com um filhote. Pouco tempo depois, outro ninho, também com um filhote de quatro a cinco meses, foi encontrado. 

Os filhotes estão sendo monitorados por meio de câmeras fotográficas e suas penas estão sendo coletadas no solo, embaixo dos ninhos, para posterior identificação genética dos indivíduos e do parentesco, para saber se são filhos das aves reabilitadas e soltas na reserva.  

Onça

E os achados não pararam aí. Em 2017, houve registros, pelas câmeras, da presença de uma onça pintada na área da reserva, fato que não ocorria há mais de vinte anos. A onça, que como a harpia, ocupa o topo da cadeia alimentar da natureza, também se encontra bastante ameaçada, fruto do avanço da fronteira agrícola, da perda de habitat e da caça.

Agora, estão sendo instaladas mais câmeras, pelo ICMBio em parceria com a Veracel, para monitorar a presença do mamífero. “O registro das harpias e das onças é muito gratificante. Manter animais do topo de cadeia é sinal de que a floresta está viva e consegue manter esses animais”, diz Virginia.

Fico feliz em saber que as harpias estão se multiplicando, mesmo que lentamente, na mata atlântica. Será que conseguirei avistar uma nesse bioma? Ao me ouvir perguntar alto sobre isso, Virgínia prontamente me convida para visitar a RPPN. Que convite irresistível!

Foto: Jaílson de Souza.