No roteiro do Soldadinho da Caatinga

Cristina Rappa

Neste setembro, fiz uma viagem muito especial: o roteiro do meu novo livro O Soldadinho da Caatinga, da Chapada do Araripe, no Ceará, onde mora o herói, o lindo e ameaçado soldadinho-do-araripe, à Serra da Capivara, no Piauí, com uma passagem memorável pela região de Canudos/BA, onde vivem as também ameaçadas araras-azuis-de-lear.

A organização da viagem ficou sob responsabilidade de Jefferson Bob, que já conhecíamos de outra viagem pela Chapada do Araripe, que me inspirou a escrever o Soldadinho, livro de estreia de infantis da coleção Aves & Biomas. E lá fomos nós: eu, a querida amiga Maria Luiza e sua filha Paula, fotógrafa e bióloga.

Voamos de São Paulo para Juazeiro do Norte, simpática cidade do sul do Ceará que é conhecida como a terra do Padre Cícero, o Padim Ciço, religioso que se destacou pelas ações em defesa do sertanejo e até do meio ambiente.

Na chegada, lá estava Bob nos esperando para nos levar para o Sítio do Pau Preto, propriedade da família em Potengi/CE que virou pousada para passarinheiros brasileiros e estrangeiros, ótima alternativa às precárias hospedagens da região, além da vantagem de se estar em contato com a natureza e próxima das lindas espécies locais. Sem falar na delícia da acolhida e das comidas típicas preparadas por Ivete, mãe de Bob.

Chapada do Araripe/CE

Aves - Araripe Sitio Pau - corrupião (sset18) (1)A manhã começa cedo com um café-da-manhã com cuscuz e tapioca, que nos animou para avistar aves locais e endêmicas, como o tigerila (Xenopsaris albinucha) e o tiê-caburé (Compsothraupis loricata), além de outras belezas da região, como o corrupião (Icterus jamacaru) (foto).

À tarde, partimos para a parte cultural do roteiro, com a visita ao atelier de Expedito Seleiro, mestre na arte de fazer sapatos e objetos em couro, e à Casa Grande, espaço cultural que é administrado com muito profissionalismo por crianças e jovens, também em Nova Olinda. Outra visita bastante interessante foi ao Museu de Paleontologia em Santana do Cariri, com fósseis de borboletas e peixes de rio e marinhos (isso mesmo! O sertão já foi mar) bem preservados.Expedito Seleiro

E uma visita a um local inusitado, em Santana do Cariri: uma “vila europeia” em pleno sertão, construída por um apaixonado pela Europa Medieval, Seu Zé Pereira, que, sem ter como morar no velho continente, como sonhava, instalou um pouco dele na sua região. Nos divertimos e aprendemos com as histórias e causos de Zé Pereira.

TrupecandoÀ noite, pousamos como o Soldadinho no sítio Sassaré, do Mestre Antônio Luiz, das caretas do Reisado de Máscaras, e sua simpática esposa Rosa. O sítio, na zona rural de Potengi, virou um espaço cultural e lá nos deliciamos com as peripécias de Allan Barros, palhaço da Trupecando e sua Fusca Margareth. Que beleza ver crianças e adultos se divertindo juntos, dando gostosas gargalhadas, ao ar livre e sem precisar do celular para se sentirem felizes e incluídos!

Exu/PE

No dia seguinte, partimos para Canudos, na Bahia, com passagens por Exu/PE, terra do sanfoneiro Luiz Gonzaga. No caminho, parada para visitar a fazenda em que nasceu e morou Gonzaga e que pertence a descendentes de Bárbara de Alencar, avó do romancista José de Alencar, da mesma família de outra escritora cearense famosa, Rachel de Queiroz, e do político Miguel Arraes. Fazenda Araripe Exu

O que poucos sabem e foi pouco – ou nada – estudado nos livros escolares é que Bárbara foi a primeira presa política brasileira, em função de suas posições republicanas no início do século 18, ainda antes da independência do Brasil.

Região muito interessante e bonita, que tem além de muita história, bonitas paisagens e até lavouras de café e oliveiras – vejam só! Os pontos negativos são as rodovias esburacadas no Pernambuco, em gritante contraste com as boas estradas dessa região do Ceará, que até ciclovias oferecem, e muito lixo jogado nos terrenos, ruas e estradas.

Passar por cima do rio São Francisco, o Velho Chico, é momento de muita emoção. Em um determinado ponto da estrada, pudemos ver parte de duas obras  intermináveis e discutíveis, como a transposição do rio e a Ferrovia Transnordestina. Se um dia estiverem prontas, vão compensar os recursos exorbitantes e o longo tempo de espera? A água do rio vai sobreviver à transposição, também me pergunto.

Canudos/BA

Canudos tem um razão histórica e outra ambiental para ser visitada. O local foi palco da tal guerra (1896-1897), em que as forças do exército brasileiro exterminaram Antônio Conselheiro e seus seguidores, no movimento popular que tinha um fundo social, contra os grandes proprietários de terra e também religioso.

Na cidade, há um museu sobre a guerra, que visitamos antes de irmos para nossa hospedagem na Serra Vermelha, na região chamada Raso da Catarina, onde moram as famosas araras-azuis-de-lear (Anodorhynchus leari), ameaçadas de extinção pela falta da palmeira licuri, sua fonte de alimento preferida.

Canudos - Serra Vermelha - paredãoA chegada à tal serra é de tirar o fôlego. Seus paredões avermelhados, a vegetação de “caatinga de altitude”, as cabras e ovelhas circulando, o vento soprando forte e nos obrigando a usar uma manta na cama à noite. Tudo inesquecível!

O albergue da ONG Biodiversitas me lembrou muito as hospedagens nos parques norte-americanos Bryce e Grand Canyon, em Utah e Nevada. Antes das nove da noite, já nos recolhemos, porque no dia seguinte, o veículo 4×4 da ONG pegaria às 4 e meia para nos levar para ver as tão esperadas araras.

Antes mesmo do dia clarear, já escutávamos e enxergávamos a silhueta das alegres e ruidosas – como todo psidacídeo – araras. Segurando a ansiedade, conseguimos enxergá-las melhor e fazer os registros.

As aves, extremamente ameaçadas pela perda de habitat e pelo tráfico de animais silvestres, já esteve em situação mais crítica. Com a ação da pesquisa, de ONGs como a Fundação Biodiversas e de iniciativas como o Projeto Arara Azul, entre outros, maior educação e repressão ao tráfico sua população tem aumentado e hoje já é contabilizada em cerca de 1.200 indivíduos.

Aves - Canudos - arara azul de lear (set18) (1) voando em dupla

Serra da Capivara/PI

Entrar no Piauí por chão já é começar a quebrar uma série de paradigmas. É a segunda vez que visito esse estado nordestino. A primeira foi em 2004, quando me encantei pelo Delta do Parnaíba, sua única porta para o mar que agora aprendo que foi resultado de uma troca com o vizinho Ceará, e de onde iniciei minha viagem aos Lençóis Maranhenses. Agora, na visita ao Parque Nacional da Serra da Capivara, famoso pelas suas centenas de sítios arqueológicos com pinturas rupestres e outros resquícios dos primeiros habitantes da América Latina, há uns 100 mil anos, fugindo de um período de seca na África, de acordo com as pesquisas. Não

Nas duas vezes, achei as rodovias e a limpeza do Piauí melhores que as dos vizinhos Maranhão e Bahia.

Confesso que, em função de tantas notícias sobre o descaso por parte do governo federal que deixou à míngua o parque,  fui preparada para encontrar um local sem estrutura, com lixo, pichações, guias mal preparados, falta de segurança. Que nada!

Capivara - pinturas rupestres (3)_O que vimos foi um local bem cuidado, limpo, com corrimãos e trilhas em bom estado e guias bem preparados. Resultado do trabalho e da dedicação de uma mulher extraordinária: a antropóloga Niéde Guidon que, na década de 1970 “descobriu” e passou a lutar pela preservação e reconhecimento desse tesouro, que não é à toa que foi posteriormente (em 1991) reconhecido pela Unesco como patrimônio cultural mundial da humanidade.

Durante sua gestão, observando a situação das famílias locais e o comportamento dos funcionários do parque, tomou uma decisão arrojada para o conservador nordeste brasileiro: contratar apenas mulheres para guardas-parque. Afinal, concluiu, elas bebem menos e são mais responsáveis e atenciosas do que seus companheiros. O resultado foi uma melhor organização e menos faltas no parque. Quem nos contou esta história foi nosso guia homem – sim, eles também atuam atualmente na instituição – Marinho.

Uma amostra da sensibilidade da equipe do Parna Serra da Capivara: há bebedouros espalhados no local que são abastecidos de água durante a temporada seca para que os animais silvestres possam se hidratar.

Mesmo assim, há ameaças, especialmente de caçadores dentro da instituição. Escutamos ainda de Marinho o relato doloroso de uma guarda-parque assassinada pelo próprio irmão caçador, durante sua tentativa de proteger o local.

Escutando essas histórias, admirando a história e o legado, construído pela coragem e exemplo, de Niéde, observando as pinturas rupestres, as aves e os animais silvestres locais, e perdendo o fôlego diante das lindas paisagens, passamos dois dias de visita ao Parna Serra da Capivara.

O final da tarde que finalizou a visita não podia ter sido mais digno dessa maravilhosa viagem: a visão de uma família de urubus-rei (Sarcoramphus papa), nos paredões do andorinhas. E quando você acha que tudo já mais do que valeu à pena, começa o espetáculo do mergulho dos taperuçus-de-coleira-falha (Streptoprocne biscutata) para passar a noite nas fendas das pedras.

Ah! A hospedagem também foi especial: no Albergue Serra da Capivara, próximo à entrada do parque no município de Coronel José Dias. Lá, bebedouros e comedouros alimentam as aves e encantam os hóspedes ao amanhecer, e a gestão avisa que quem desperdiçar alimentos durante as refeições, deixando comida no prato, deve pagar uma taxa de R$ 6,00. Niéde teria passado por ali e deixado sua marca?

Aves - Capivara - urubu rei adulto e jovens (set18) (5)