Rica passarinhada no Pantanal paulista

Cristina Rappa

Com três viagens ao pantanal sul-matogrossense no currículo, finalmente consegui organizar um passeio ao Tanquã, no município de Piracicaba, a umas duas horas da minha casa. E gostei muito!

Com pouco mais de 14 mil hectares de área e abrangendo diversos municípios aqui listados em ordem alfabética – Anhembi, Botucatu, Dois Córregos, Piracicaba, Santa Maria da Serra e São Pedro – o Tanquã se tornou uma APA, ou seja, uma Área de Proteção Ambiental, no final de 2018.

Cristina Rappa

Por abrigar cerca de 180 espécies de aves nativas e migratórias, além de mamíferos, répteis e anfíbios, e ser importante para a qualidade da água do rio Piracicaba, tornar o Tanquã uma área protegida era uma antiga demanda de ambientalistas.

Pois bem. Organizada a agenda e decidida a ir, combinei a passarinhada com Gustavo Pinto, que me pegou às cinco e meia da manhã em hotel em Santa Bárbara do Oeste. Em menos de uma hora chegávamos na vila de pescadores e nos encontrávamos com um observador bem mais experiente que eu, Norton Santos, que se juntaria a nós, e com o barqueiro Ivanildo, hábil na condução do barco e conhecedor de aves.

Gustavo e Ivanildo

Gustavo e Ivanildo

Gustavo me conta que tem uma ligação forte com o Tanquã, por ser o cenário de sua primeira passarinhada, em 2009. A aptidão do local para o ecoturismo e o birdwatching não mudou a vida apenas desse ex-metalúrgico que se tornou um respeitado guia de observação de aves do interior de São Paulo. Os pescadores aproveitam para engrossar consideravelmente a renda levando os passarinheiros em seus barcos, o que faz bastante diferença para garantir o sustento das famílias, especialmente nos quatro meses do defeso, de novembro a final de fevereiro, quando a pesca é proibida.

“Faz muita diferença; ainda mais neste ano quando ainda não recebemos o seguro-defeso”, diz Ivanildo. O seguro-defeso é uma ajuda de um salário-mínimo (cerca de R$ 1 mil) por mês concedida pelo governo para compensar o período em que o pescador tem que interromper a pesca, para preservar os peixes na época de reprodução.

Saracuras, andorinhas e muito mais

Aves - Tanquã - saracura carijo (1)Antes de subirmos no barco de Ivanildo,  registramos uma família de saracura-carijó (Pardirallus maculatus): a mãe e três filhotes, “ciscando” na beira do rio, por entre os barcos estacionados. E na vila, nossa atenção e olhar se voltam para o alto, já que os fios estavam tomados por andorinhas-de-bando, que faziam realmente jus ao nome popular, uma ou outra andorinha-do-campo (Progne tapera), do-barranco (Riparia riparia, espécie nova para mim) e grande-de-casa (Progne chalybea) no meio delas. Mais tarde, em outra parte do rio, veríamos mais andorinhas: do rio (Tachycineta albiventer) e serradora (Stelgidopteryx ruficollis).Cristina Rappa

Registradas as andorinhas e as saracuras, entramos no barco e adentramos o rio Piracicaba. Logo de cara, um bando enorme (seriam mais de duzentos?) de frangos d’água comuns e pernilongos-de-costas-brancas. Mais tarde, veríamos frangos d’água-azuis, linda espécie que eu só havia registrado até então no parque nacional norte-americano de Everglades, na Flórida.

A aventura e o deslumbramento mal começavam. Dezenas de garças mouras e brancas, grandes e pequenas, tapicurus, caraúnas, maçaricos, trinta-réis e marrecos. Lindas famílias de marrecas-caboclas e caneleiras, além de casais de toicinho e marrecões. Inúmeros socós, savacus e biguás. E para reforçar a sensação de pantanal, diversos tuiuiús (foto abaixo).

Cristina Rappa

Poluição é ameaça

“Antes isso aqui tinha muito mais bichos”, recorda-se o pescador Nilson, o Alemão, quando chegamos de volta à vila. Mais falante do que Ivanildo, Alemão conta que é paulista de Limeira e que mora no Tanquã há 25 anos. Ele atribui à poluição, ao lixo e aos resíduos de agrotóxicos aplicados nas lavouras de cana e pomares de citros da região, além da criação de gado nas margens do rio, a diminuição das aves no local.

Observamos com tristeza e indignação realmente garrafas pet além de outros dejetos nas margens do rio. Na hora do almoço, comendo um peixe grelhado na rua do Porto, em Piracicaba, eu veria mais sujeira na beirada do rio. Uma pena, mas acredito que, aos poucos, a conscientização aumenta e as pessoas passam a valorizar e respeitar mais o ambiente.

Cristina Rappa

Tapicuru e marrecão, espécie escassa, convivem com lixo nas margens do rio

Por uma cidade mais alegre e colorida

Jade Gadotti

Afinar os ouvidos é a fórmula para descobrir os sons dos pássaros que se escondem por trás dos ruídos urbanos

Viajo bastante, mas quando estou em São Paulo costumo ser acordada, por volta das seis e meia, por um bando de papagaios-verdadeiros, que vêm fazendo uma alegre algazarra de regiões mais a oeste da cidade, param um pouco nas árvores da minha rua, no Jardim Paulistano, e depois seguem rumo ao Ibirapuera e à zona sul. Hora de levantar, dar comida aos meus gatos e colocar frutas para os sabiás-laranjeira, sanhaçus-cinzentos, bem-te-vis e as pombinhas avoante que aparecem diariamente no meu jardim. E longe do acesso do felinos, que ficam em zona da casa protegida por tela, para a sua segurança e das aves.

Após esse ritual, saímos, meu marido e eu, para a prática do nosso esporte diário, que pode ser uma caminhada ou corrida pelas ruas arborizadas do bairro.

Já soube de estudos mostrando que o contato com a natureza é positivo para a saúde e o humor das pessoas, no que sinceramente acredito. É só eu entrar em uma mata que já sinto uma enorme paz e alegria. Os mais pessimistas ou céticos questionam: como ter contato com a natureza vivendo em uma cidade como São Paulo?

Sabiá-laranjeira em praça do meu bairro, em SP

Sabiá-laranjeira em praça do meu bairro, em São Paulo

É possível sim. É certo que quem mora nos Jardins é privilegiado em muitos sentidos. No Paulistano, há mais de uma praça e elas são bem cuidadas, pelos moradores ou associações deles; as ruas são arborizadas, o que as torna mais frescas e agradáveis; os moradores se preocupam em reflorestar as calçadas com árvores frutíferas e/ou que dão flores, como amoreiras, pitangueiras, resedás, bauínias e flamboyanzinhos, e ainda em cultivar orquídeas nas árvores, o que embeleza e atrai pássaros e insetos como borboletas e joaninhas.

Isso sem falar nas pessoas especiais que presenteiam os vizinhos com frutas de seus pomares, preocupam-se com animais abandonados ou perdidos em nossas ruas, e em ajudar e saber se está tudo bem com os outros. Uma corrente de cordialidade muito bacana, mostrando que certos valores não precisam se perder na correria do dia-a-dia da cidade grande e que cabe a nós mantê-los e reforçá-los.

Cultivar plantas, em praças, ruas e jardins, para quem mora em casa, ou em vasos, no caso de quem mora em prédio, não é nada do outro mundo, e pode ser feito em qualquer bairro. Cuidar das praças, frequentar, dar sugestões, fiscalizar a limpeza e a manutenção dos parques, idem. É exercer nossa cidadania, tomar posse da nossa cidade. Não dá para ficar esperando o poder público resolver tudo e agradar a todos.

Marreca e irerês no Ibirapuera

Marreca e irerês no Ibirapuera

Eu, que adotei há seis anos o hobby de observar aves, e já viajei para isso a muitos lugares do Brasil, venci meu preconceito sobre “passarinhar” em São Paulo. Sempre que posso, me junto a grupos que vão ver passarinhos em parques como o Ibirapuera, da Cantareira, Horto Florestal, Ecológico do Tietê, Jardim Botânico e Instituto Butantã, entre outros locais. Nunca me senti insegura, só encontrei gente com a mesma vontade de aproveitar o que de bom a cidade oferece, e avistei muito passarinho. Sim, pois já foram registradas na cidade de São Paulo mais de 480 espécies de aves, número superior a de países europeus como Itália e Portugal.

É primavera. Que tal ajudar a colorir, do jeito que achar melhor, a cidade? É só começar para se encantar e não parar mais. Alegria pode ser contagiante.

Cristina Rappa, paulistana, é jornalista, escritora de livros infantojuvenis e observadora de aves.

Foto de destaque: Jade Gadotti; fotos das aves: Cristina Rappa.

Esta crônica foi publicada originalmente no jornal aQuadra, edição out/nov de 2019.

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O resgate da pequena jandaia

Neste carnaval, reunimos um grupo de amigos e lá fomos para a fazenda da minha família no sul de Minas. Como o grupo era de ciclistas, considerei que haveria pouco espaço para os passarinhos, outra das minhas paixões, nesse feriado. Ledo engano.

Eis que, no final da tarde do sábado, CH, um dos amigos, me chama, dizendo que tinha visto um passarinho, “daqueles de cabeça vermelha”, caído no chão do pomar e que eu deveria ir ver, porque parecia estar precisando de ajuda. Era um filhote de jandaia-de-testa-vermelha (Aratinga auricapillus), lindo psitacídeo que domina a copa das árvores e o céu da fazenda, especialmente nessa época de colheita do sorgo.

Todo final de tarde era o mesmo espetáculo: bandos enormes dessas aves sobrevoavam o que restava da lavoura de sorgo, grão utilizado na silagem do gado, por ser boa fonte de proteína. O fato atraía ainda os carcarás, rapinantes cuja presença cresce nessa época, certamente atraídos pelas aves, como codornas e canarinhos (foto abaixo), que saem dos campos que estão sendo colhidos.Aves - Arceburog - canario da terra no sorgo (fev19)

Tirei a avezinha, que já deveria voar mas parecia meio apática e tonta (teria sido atacada por um carcará?) do chão, onde seria presa fácil de animais como os cachorros da casa, e a coloquei em galho da árvore mais próxima, na esperança da mãe encontrá-lo. Este é o procedimento básico para quem acha um filhote caído do ninho, ensinam os especialistas.

Dali a pouco, voltamos lá e o passarinho está novamente no chão. Após a terceira tentativa e como anoitecia, resolvemos abrigá-lo na lavanderia da casa, que já virou, segundo minha mãe, uma espécie de enfermaria, onde já cuidamos de uma coruja liberada da cerca de arame farpado e de um carcará faminto.

Experimentei oferecer frutas, como mamão e banana, e o danadinho, bastante faminto, comeu tudo da minha mão e nas das demais “cuidadoras”, Célia e Eliane, com rapidez e voracidade.

Passou a primeira noite empoleirado em uma cadeira, para, na manhã seguinte, ser colocado em uma antiga gaiola de coelhos e deixado ao ar livre, no gramado próximo à edícula em cujo beiral havia recentemente um ninho dessas aves. “Deve ser um dos filhotes”, sugeriu a Rosa, que trabalha na fazenda há anos e participou dos cuidados à coruja e ao carcará.Aves - Marimbondo - jandaia de testa vermelha mae (mar19)

Ela deveria estar certa, pois não demorou muito para o filhote ser localizado pela família, que veio em peso tentar resgatá-lo. Que radar extraordinário têm as mães! A do nosso amiguinho logo estabeleceria seu quartel-general em árvore próxima, de onde vigiava o filhote.

As tentativas de voo da avezinha, porém, não tinham sucesso e ela acabava caindo no chão. Precisava se fortalecer um pouco mais, diagnosticamos.

E, assim, nos dias seguintes, a nossa rotina foi toda manhã colocar a gaiola com o bichinho fora, quando a mãe vinha alimentá-lo e fazer carinho, e recolhê-lo no final do dia.A mãe vinha alimentar o filhote durante o dia

Quanto tempo levaria para ele ficar forte e voar? Estaria machucado? Na tarde da quarta-feira-de-cinzas, despedi-me dele e voltei a São Paulo com essas preocupações. 

Não é que na sexta-feira cedo, meu irmão decide que já era hora de deixar a porta da gaiola aberta e, sob o olhar atento do Seu Nilo – preocupado se os cachorros respeitariam a avezinha caso ela saísse e caísse no chão – o bravo papagainho bate as asas com mais força e consegue se juntar à família em árvore próxima? E lá vai ele, todo animado, explorar os céus das Minas Gerais, com tudo o que as aves têm direito.

Navegando até a serra do Pantanal

Em visita ao primeiro dia do congresso de aves de 2018 em São Paulo, o Avistar, onde eu faria uma apresentação sobre as minhas palestras em escolas sobre meio ambiente e pássaros, temáticas dos meus livros infantojuvenis, minha amiga Maria Luiza e eu somos cativadas por um irresistível convite: participar de uma viagem inaugural do barco Lord do Pantanal pelo rio Paraguai, na região da Serra do Amolar, no Mato Grosso do Sul.

A ideia dos donos do barco e da organização do Instituto Serra do Amolar, instituição que se dedica a pesquisas para a preservação da região, era aproveitar o recesso da pescaria na época do defeso, quando não se pode pescar. Otimizar o barco, prover renda à população local e ainda divulgar a região, incipiente em termos de turismo – com exceção dos aficcionados pela pesca esportiva – a amantes do ecoturismo, como os observadores de aves, os mergulhadores e os fotógrafos de natureza.

Eu, que já tinha ido ao Pantanal Sul duas vezes e uma, rapidamente, ao Norte, logo topei. Luiza, que nunca tinha estado no Mato Grosso do Sul, também se entusiasmou.

Amolar - rio com serra ao fundo

A Serra do Amolar, encravada entre o Mato Grosso do Sul, a Bolívia e o Mato Grosso, tendo o rio Paraguai como via de acesso, é uma região atípica do nosso pantanal, por ter montanhas no entorno e por permanecer alagada praticamente o tempo todo. Nessas condições, que favorecem o isolamento, a população, em sua maioria pertencente à etnia de índios Guapó, é de pouco mais de 300 pessoas, que sobrevivem da pesca e da criação de animais para sua subsistência. 

Outra característica que torna essa região muito peculiar é poder ali encontrar plantas de diversos biomas, como caatinga (sim, caatinga!), cerrado, amazônia e mata atlântica.

Jacarés e o espetáculo dos tuiuiús

Nas vésperas do feriado de 15 de novembro, que emendaria com o do dia 20, lá fomos nós a Campo Grande, onde nos reunimos com o grupo de cerca de 30 pessoas que viajaria conosco no Lord.

Aves - Amolar - tuiuius pai e filho ensaiando voo (3)Na primeira etapa da viagem, de ônibus até Corumbá, de onde sairia o barco, a aventura já tem início, com paradas para ver os jacarés adestrados pela Dona Maria, que assim tira seu sustento dos turistas, e um lindo balé entre pai e filho de tuiuiús, em que o último dá seus ensaios de voo, sob o olhar orgulhoso do progenitor. E para alegria e deleite nosso. Não me cansei de aplaudir e registrar esse espetáculo emocionante, que compensou o constrangimento pelos pobres jacarés gordos e manhosos.

A rotina nos quatro dias no barco começava cedo – entre 4h30 e 5h30 – com um maravilhoso café-da-manhã preparado pela talentosa e incansável equipe do Lord do Pantanal (sinceramente, não sei como não engordei …) e a saída em duplas em lanchinhas, com um barqueiro dedicado a nos levar a explorar cada canto da Serra do Amolar.

Conduzidas pelo experiente Naldo, Luiza e eu avistamos macacos, mamíferos aquáticos como ariranhas e capivaras, jacarés (inúmeros!), e lindas aves, como os gaivões belo (foto), preto e carcará, tachãs, aracuãs, garças, biguás e biguatingas secando suas asas ao sol, martins pescadores, águias também pescadoras, socós, papagaios, maitacas verdes e tiribas-de-cara-suja, surucuás e inúmeras outras espécies não menos lindas.Aves - Amolar - gavião belo

Cadê a onça?

Só faltou a onça-pintada, com quem seis pessoas do grupo tiveram a felicidade de cruzar, e que Liz e Susana, excelentes fotógrafas, registraram em meio a muita emoção. Não é para menos! Nem sei como seria a minha reação ao ver uma onça livre de perto.

Fica para a próxima, não é, Luiza? E uma vez que ganhei nova viagem como prêmio no concurso de fotos promovido pela organização do passeio – com um registro (abaixo) do gado e de mercadorias sendo transportados de balsa pelo Paraguai, cena que presenciava diversas vezes ao dia, e com o contorno da linda serra ao fundo – o encontro com a onça pode não demorar a acontecer.

Amolar - balsa com gado

A bagagem da volta foi engordada pelas boas lembranças dos momentos passados com os novos amigos; as boas dicas e a emoção de avistar (apenas avistar no meu caso…) a choca-da-Bolívia com a experiente observadora de aves e fotógrafa Silvia Linhares; a simpatia e o profissionalismo dos biólogos Thomaz Lippareli e Marcelo Calazans; o carinho da tripulação do Lord; e as inesquecíveis e valiosas prosas com Seu Armando, o antigo dono das terras onde hoje funciona o Instituto Serra do Amolar.

Cuidar é preciso

Amolar - vista do rio pelo barquinhoCom algumas certezas voltei dessa expedição: que é preciso cuidar dessa região; educar para uma prática consciente de pescaria, especialmente porque o dourado (Salminus brasilienses), o cobiçado peixe do Pantanal, encontra-se ameaçado pela pesca predatória; e que a população local é a melhor defensora de sua terra. Mas, para retê-la no lugar, é preciso que tenha renda para viver dignamente e o turismo ecológico pode ser uma solução. Até para transformar caçadores em guias e guardiões da região.

Cristina Rappa

Viviane alimenta, com seu lanche, cãezinhos famintos

E por falar no dourado, quando finalizo este texto leio que o governo do Mato Grosso do Sul suspendeu, por cinco anos, sua pesca – profissional, esportiva ou amadora – a fim de recompor os estoques pesqueiros. Que a medida seja de fato implementada e que o dourado volte a reinar nas águas limpas do Pantanal!

Não apenas a pesca do dourado precisa ser regulamentada e fiscalizada, como toda a pesca em si. Espantada com a quantidade de carcarás (Caracala plancus) em volta do barco sempre que aportávamos, aprendo com Seu Armando que a prática de “limpar” os peixes logo após sua pesca atrai essas aves de rapina. Toda vez que elas veem um barco o associam a comida fácil. O aumento nada natural de sua população afugenta diversas espécies de pássaros menores, normalmente predados pelo gavião.

Assim, faço meu trabalho de comunicação e torço para que a educação e a maior consciência das pessoas para as questões que ameaçam o nosso ambiente contribuam para a população de animais, como as onças-pintadas e os dourados, voltar a crescer.

Amolar - paisagem com arvores secas

No roteiro do Soldadinho da Caatinga

Cristina Rappa

Neste setembro, fiz uma viagem muito especial: o roteiro do meu novo livro O Soldadinho da Caatinga, da Chapada do Araripe, no Ceará, onde mora o herói, o lindo e ameaçado soldadinho-do-araripe, à Serra da Capivara, no Piauí, com uma passagem memorável pela região de Canudos/BA, onde vivem as também ameaçadas araras-azuis-de-lear.

A organização da viagem ficou sob responsabilidade de Jefferson Bob, que já conhecíamos de outra viagem pela Chapada do Araripe, que me inspirou a escrever o Soldadinho, livro de estreia de infantis da coleção Aves & Biomas. E lá fomos nós: eu, a querida amiga Maria Luiza e sua filha Paula, fotógrafa e bióloga.

Voamos de São Paulo para Juazeiro do Norte, simpática cidade do sul do Ceará que é conhecida como a terra do Padre Cícero, o Padim Ciço, religioso que se destacou pelas ações em defesa do sertanejo e até do meio ambiente.

Na chegada, lá estava Bob nos esperando para nos levar para o Sítio do Pau Preto, propriedade da família em Potengi/CE que virou pousada para passarinheiros brasileiros e estrangeiros, ótima alternativa às precárias hospedagens da região, além da vantagem de se estar em contato com a natureza e próxima das lindas espécies locais. Sem falar na delícia da acolhida e das comidas típicas preparadas por Ivete, mãe de Bob.

Chapada do Araripe/CE

Aves - Araripe Sitio Pau - corrupião (sset18) (1)A manhã começa cedo com um café-da-manhã com cuscuz e tapioca, que nos animou para avistar aves locais e endêmicas, como o tigerila (Xenopsaris albinucha) e o tiê-caburé (Compsothraupis loricata), além de outras belezas da região, como o corrupião (Icterus jamacaru) (foto).

À tarde, partimos para a parte cultural do roteiro, com a visita ao atelier de Expedito Seleiro, mestre na arte de fazer sapatos e objetos em couro, e à Casa Grande, espaço cultural que é administrado com muito profissionalismo por crianças e jovens, também em Nova Olinda. Outra visita bastante interessante foi ao Museu de Paleontologia em Santana do Cariri, com fósseis de borboletas e peixes de rio e marinhos (isso mesmo! O sertão já foi mar) bem preservados.Expedito Seleiro

E uma visita a um local inusitado, em Santana do Cariri: uma “vila europeia” em pleno sertão, construída por um apaixonado pela Europa Medieval, Seu Zé Pereira, que, sem ter como morar no velho continente, como sonhava, instalou um pouco dele na sua região. Nos divertimos e aprendemos com as histórias e causos de Zé Pereira.

TrupecandoÀ noite, pousamos como o Soldadinho no sítio Sassaré, do Mestre Antônio Luiz, das caretas do Reisado de Máscaras, e sua simpática esposa Rosa. O sítio, na zona rural de Potengi, virou um espaço cultural e lá nos deliciamos com as peripécias de Allan Barros, palhaço da Trupecando e sua Fusca Margareth. Que beleza ver crianças e adultos se divertindo juntos, dando gostosas gargalhadas, ao ar livre e sem precisar do celular para se sentirem felizes e incluídos!

Exu/PE

No dia seguinte, partimos para Canudos, na Bahia, com passagens por Exu/PE, terra do sanfoneiro Luiz Gonzaga. No caminho, parada para visitar a fazenda em que nasceu e morou Gonzaga e que pertence a descendentes de Bárbara de Alencar, avó do romancista José de Alencar, da mesma família de outra escritora cearense famosa, Rachel de Queiroz, e do político Miguel Arraes. Fazenda Araripe Exu

O que poucos sabem e foi pouco – ou nada – estudado nos livros escolares é que Bárbara foi a primeira presa política brasileira, em função de suas posições republicanas no início do século 18, ainda antes da independência do Brasil.

Região muito interessante e bonita, que tem além de muita história, bonitas paisagens e até lavouras de café e oliveiras – vejam só! Os pontos negativos são as rodovias esburacadas no Pernambuco, em gritante contraste com as boas estradas dessa região do Ceará, que até ciclovias oferecem, e muito lixo jogado nos terrenos, ruas e estradas.

Passar por cima do rio São Francisco, o Velho Chico, é momento de muita emoção. Em um determinado ponto da estrada, pudemos ver parte de duas obras  intermináveis e discutíveis, como a transposição do rio e a Ferrovia Transnordestina. Se um dia estiverem prontas, vão compensar os recursos exorbitantes e o longo tempo de espera? A água do rio vai sobreviver à transposição, também me pergunto.

Canudos/BA

Canudos tem um razão histórica e outra ambiental para ser visitada. O local foi palco da tal guerra (1896-1897), em que as forças do exército brasileiro exterminaram Antônio Conselheiro e seus seguidores, no movimento popular que tinha um fundo social, contra os grandes proprietários de terra e também religioso.

Na cidade, há um museu sobre a guerra, que visitamos antes de irmos para nossa hospedagem na Serra Vermelha, na região chamada Raso da Catarina, onde moram as famosas araras-azuis-de-lear (Anodorhynchus leari), ameaçadas de extinção pela falta da palmeira licuri, sua fonte de alimento preferida.

Canudos - Serra Vermelha - paredãoA chegada à tal serra é de tirar o fôlego. Seus paredões avermelhados, a vegetação de “caatinga de altitude”, as cabras e ovelhas circulando, o vento soprando forte e nos obrigando a usar uma manta na cama à noite. Tudo inesquecível!

O albergue da ONG Biodiversitas me lembrou muito as hospedagens nos parques norte-americanos Bryce e Grand Canyon, em Utah e Nevada. Antes das nove da noite, já nos recolhemos, porque no dia seguinte, o veículo 4×4 da ONG pegaria às 4 e meia para nos levar para ver as tão esperadas araras.

Antes mesmo do dia clarear, já escutávamos e enxergávamos a silhueta das alegres e ruidosas – como todo psidacídeo – araras. Segurando a ansiedade, conseguimos enxergá-las melhor e fazer os registros.

As aves, extremamente ameaçadas pela perda de habitat e pelo tráfico de animais silvestres, já esteve em situação mais crítica. Com a ação da pesquisa, de ONGs como a Fundação Biodiversas e de iniciativas como o Projeto Arara Azul, entre outros, maior educação e repressão ao tráfico sua população tem aumentado e hoje já é contabilizada em cerca de 1.200 indivíduos.

Aves - Canudos - arara azul de lear (set18) (1) voando em dupla

Serra da Capivara/PI

Entrar no Piauí por chão já é começar a quebrar uma série de paradigmas. É a segunda vez que visito esse estado nordestino. A primeira foi em 2004, quando me encantei pelo Delta do Parnaíba, sua única porta para o mar que agora aprendo que foi resultado de uma troca com o vizinho Ceará, e de onde iniciei minha viagem aos Lençóis Maranhenses. Agora, na visita ao Parque Nacional da Serra da Capivara, famoso pelas suas centenas de sítios arqueológicos com pinturas rupestres e outros resquícios dos primeiros habitantes da América Latina, há uns 100 mil anos, fugindo de um período de seca na África, de acordo com as pesquisas. Não

Nas duas vezes, achei as rodovias e a limpeza do Piauí melhores que as dos vizinhos Maranhão e Bahia.

Confesso que, em função de tantas notícias sobre o descaso por parte do governo federal que deixou à míngua o parque,  fui preparada para encontrar um local sem estrutura, com lixo, pichações, guias mal preparados, falta de segurança. Que nada!

Capivara - pinturas rupestres (3)_O que vimos foi um local bem cuidado, limpo, com corrimãos e trilhas em bom estado e guias bem preparados. Resultado do trabalho e da dedicação de uma mulher extraordinária: a antropóloga Niéde Guidon que, na década de 1970 “descobriu” e passou a lutar pela preservação e reconhecimento desse tesouro, que não é à toa que foi posteriormente (em 1991) reconhecido pela Unesco como patrimônio cultural mundial da humanidade.

Durante sua gestão, observando a situação das famílias locais e o comportamento dos funcionários do parque, tomou uma decisão arrojada para o conservador nordeste brasileiro: contratar apenas mulheres para guardas-parque. Afinal, concluiu, elas bebem menos e são mais responsáveis e atenciosas do que seus companheiros. O resultado foi uma melhor organização e menos faltas no parque. Quem nos contou esta história foi nosso guia homem – sim, eles também atuam atualmente na instituição – Marinho.

Uma amostra da sensibilidade da equipe do Parna Serra da Capivara: há bebedouros espalhados no local que são abastecidos de água durante a temporada seca para que os animais silvestres possam se hidratar.

Mesmo assim, há ameaças, especialmente de caçadores dentro da instituição. Escutamos ainda de Marinho o relato doloroso de uma guarda-parque assassinada pelo próprio irmão caçador, durante sua tentativa de proteger o local.

Escutando essas histórias, admirando a história e o legado, construído pela coragem e exemplo, de Niéde, observando as pinturas rupestres, as aves e os animais silvestres locais, e perdendo o fôlego diante das lindas paisagens, passamos dois dias de visita ao Parna Serra da Capivara.

O final da tarde que finalizou a visita não podia ter sido mais digno dessa maravilhosa viagem: a visão de uma família de urubus-rei (Sarcoramphus papa), nos paredões do andorinhas. E quando você acha que tudo já mais do que valeu à pena, começa o espetáculo do mergulho dos taperuçus-de-coleira-falha (Streptoprocne biscutata) para passar a noite nas fendas das pedras.

Ah! A hospedagem também foi especial: no Albergue Serra da Capivara, próximo à entrada do parque no município de Coronel José Dias. Lá, bebedouros e comedouros alimentam as aves e encantam os hóspedes ao amanhecer, e a gestão avisa que quem desperdiçar alimentos durante as refeições, deixando comida no prato, deve pagar uma taxa de R$ 6,00. Niéde teria passado por ali e deixado sua marca?

Aves - Capivara - urubu rei adulto e jovens (set18) (5)