O carcará faminto

Cristina Rappa

Todos aqui sabem da minha paixão por aves. E, entre as aves, tenho uma preferência especial pelas de rapina, categoria da qual fazem parte as corujas e os gaviões. Acho que o episódio do resgate da coruja murucututu-de-barriga-amarela da cerca de arame farpado na fazenda, em 2012, foi um marco.

Mas corujas são – ou parecem ser – mais meigas que gaviões e eu nunca havia tido um contato mais próximo com estes. Só a observação.

Não é que, no final de junho, caminhando no final da tarde com as cachorras Diana e Juno pela fazenda no sul de Minas, vejo a segunda correr para dentro do pasto, atraída por algo. Era uma ave caída e lá vou eu pular a cerca para salvar a pobre da curiosidade da cachorra. Era um carcará (Caracara plancus), uma espécie da gavião da família Falconidae, muito comum na região Sudeste e, oportunista, encontrada até na cidade de São Paulo. Recentemente, por exemplo, avistei um casal no estacionamento de uma loja Pão de Açúcar.

Quem tem mais de quarenta e se lembra da música eternizada na voz de Maria Betânia (“pega, mata e come”) pode se assustar. Mas, não: o animal estava indefeso, de barriga para cima, como um jabuti virado. Afasto Juno e pego, com cuidado, a ave. Não quero machucar minhas mãos com aquelas garras afiadas de capturar e carregar presas.

Reconhecendo que está sendo salvo (que sensibilidade têm os animais!), ele logo tem os batimentos cardíacos acalmados, depois do susto inicial causado pela investida da Juno. Como notei que havia uma outra ave da mesma espécie nas proximidades, coloco-o no cocho, para ver se fica por lá e o par vem resgatá-lo. Nada. O companheiro (ou companheira? Essa espécie apresenta dismorfismo sexual, ou seja, macho e fêmeas são iguais) some. E o “meu” caracará mal para em pé e fico com receio de que dois outros gaviões, um carijó e um carrapateiro, que também estavam por ali, ou mesmo os cachorros, o peguem.

Resolvo levá-lo para casa e, com a ajuda do amigo biólogo, guia de aves e amante de rapinantes, Kassius Santos, contatado pelo Facebook, tenho o diagnóstico: não se trata de um jovem e sim de um adulto que estaria faminto e fraco. Alguns dias de dieta de carnes cruas e o animal logo estará recuperado e voando novamente, me assegura Kassius, com a precisão daqueles que estudaram bastante o assunto.

Dito e feito. Instalado na área de serviço da casa, que é fechada por grade e tela de galinheiro pelo Seu Nilo, para que os cachorros não entrem e ele não vá atrás deles, ele logo devora os peitos de frango e pedaços de carne bovina crua que eu e a Rosa lhe damos.

Carcará Gumercindo na gramaRosa, que cuidou tão bem da coruja quando tive que voltar a São Paulo, logo se dedica ao carcará, a quem batizamos de Gumercindo.

Em três dias, Gumercindo já anda melhor, sem se desequilibrar e já tem acesso ao gramado, em uma operação de guerra para conter os curiosos cachorros. E, em seis dias, já voa e parte feliz da vida.

Fico bastante feliz, porque tenho consciência de que lugar de animal silvestre é na natureza. Minha dúvida, no entanto, é: já que ele tem uma dieta variada, alimentando-se de pequenos vertebrados, vivos ou mortos, e invertebrados como os carrapatos do gado, daí ser presença frequente em pastos, além de frutos e sementes, como perdeu a capacidade de caçar ou não encontrou comida a ponto de ficar tão fraco?

Outra curiosidade: será que Gumercindo reencontrou sua cara-metade? E, ainda, será que volta para nos visitar, como fez a coruja?