As muitas aves de Arceburgo

Há sons que logo me fazem lembrar as minhas deliciosas férias na fazenda, no sul de Minas. São eles o zurro do jumentinho Dudu – quando eu era bem pequena e ficávamos na Casa de Baixo, da minha bisavó -, o canto da seriema, do anú-branco e do pombão.

Engraçado! De acordo com a minha memória auditiva, é que como se só houvesse esses pássaros, além dos de-sempre tico-ticos e pardais, que costumavam fazer ninho nos beiras da casa e estavam sempre por perto. Fraca a biodiversidade da época nas fazendas “café-com-leite”. Ou era eu que – apesar de desde pequena uma amante da natureza – não me atentava para esse tipo de observação?

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Pica-pau-de-topete-vermelho

E olha que a minha avó era daquelas pessoas que, intuitivamente, quando nem se falava em mudanças climáticas, seca e poluição, não permitia que se caçasse, pescasse e cortasse árvores em suas terras. Briguenta, expulsava meninos que entrassem portando estilingue. Brincadeira besta caçar passarinho, mas normal na época, principalmente na área rural. Hoje os moleques preferem o vídeo game. 

Pois neste início de novembro, o pequeno município de Arceburgo – que já foi São João da Fortaleza nos tempos em que eu nem era nascida e hoje conta com 10 mil habitantes – atinge bravamente a marca de 248 espécies de aves registradas na plataforma WikiAves, fazendo parte do time dos dez por cento campeões de Minas Gerais (posição inferior à de número 60, em 853 municípios do Estado), superando alguns lugares turísticos e maiores, inclusive da vizinha e belíssima Serra da Canastra. Muito bom sinal de preservação do ambiente! Os proprietários rurais da região pelo visto já sabem que é preciso manter a mata nativa, proteger as nascentes, fazer rotação de culturas, usar produtos adequados para combater pragas, entre outras práticas.

A área urbana, pelo seu lado, tem ruas arborizadas com espécies que atraem beija-flores, especialmente, e até um parque ambiental. Além disso, o fato de as pessoas saberem que é crime caçar e aprisionar um animal silvestre sem autorização, também ajuda, apesar de uma e outra gaiola com pássaros-pretos, trinca-ferros e canários que às vezes vemos, com tristeza. 

Agora contabilizo facilmente, apenas em volta da casa, muitas espécies, como canário-da-terra, que voltou após décadas de gaiolas, gaturamo-verdadeiro, choca-barrada, gralha-do-campo, ferreirinho-relógio, petrim, bem-te-vi, sabiá-do-barranco, lavadeira-mascarada, ariramba, pipira-vermelha, bacurau, sanhaços, saíra-amarela, um vasto time de andorinhas e pica-paus (de banda-branca, de topete-vermelho, rei, do-campo, verde-barrado e branco), maria-faceira e os ruidosos jandaia-de-testa-vermelha, periquito-rei, periquitão-maracanã e até maracanã-verdadeira. A lista é grande e de olho nessa turma, estão, em número também crescente, a coruja mucurututu-da-barriga-amarela, o carcará, o sovi, o gavião-carijó e o tucanuçu, entre outros predadores.

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Casal de carcarás observa a paisagem em busca de comida a ser caçada

Nem tudo são flores, mas sempre há esperança

Dois fatos nos preocuparam e entristeceram neste ano na região: a instalação de torres de energia cortando nossas terras – fato que tentamos, sem sucesso, evitar – e um incêndio de grandes proporções na mata da fazenda vizinha, local tradicional das nossas passarinhadas.

Cristina Rappa

A águia-cinzenta no alto da torre

No caso das torres, não é que elas nos brindaram com a presença de um casal de águias-cinzentas (Urubitinga coronata), espécie bastante ameaçada no Brasil, em função de perda da habitat e caça? Grande (chega a medir 84 cm), preda pequenos mamíferos, como gambás, ratos e lebres, além de serpentes. E, como gostam de se empoleirar no alto, as torres lhes pareceram um bom local para fazer ninho. Como as cegonhas de Portugal e as curicacas de Tavares/RS, para quem leu uma das minhas crônicas recentes.

Ou seja, mesmo coisas feias podem trazer beleza. A águia-cinzenta, avistada no feriado de Finados, foi a espécie de número 247 contabilizada em Arceburgo. No dia seguinte, meu amigo Ademir, que é secretário do meio ambiente do município, avistaria com emoção outra espécie ameaçada: o curió, pássaro muito querido pelos traficantes de aves.     

Quanto ao incêndio, o ano quente e seco, aliado a alguma possível imprudência humana, fizeram a linda mata arder, expulsando o lobo-guará, a jaguatirica, o cachorro-do-mato, as cobras e muitos passarinhos, sendo que muitos estavam em seus ninhos sem ainda saber voar, já que a queimada se deu no final de setembro, no início da primavera. Imensa tristeza! Queimadas, além da judiação com os animais que vivem na mata, representam perda de biodiversidade, poluição e contribuição para o aquecimento global, já que reduzem a floresta e jogam muito carbono na atmosfera.

Foi algo que eu nunca tinha visto por lá e espero nunca voltar a ver. Estima-se que a mata levará uns dez anos para se recuperar. Vou viver para ver e já me juntei aos passarinhos para espalhar sementes e apressar esse processo.