Louros em São Paulo

Cristina Rappa

A experiência tem virado rotina neste outono: despertar por volta das seis e meia ao som de revoada de papagaios. Na primeira vez, meio sonolenta, achei que estava sonhando e que estava no Cerrado ou na Amazônia, biomas onde as revoadas de psitacídeos são a marca registrada.

Mas, não. Acordo na minha casa, em plena cidade de São Paulo. O bando continua dando rasantes sobre minha casa e as dos vizinhos. E como fazem barulho!

Visto-me rapidamente e saio na rua munida de binóculo, máquina fotográfica e celular, para gravar o som. Parte do bando está comendo uma espécie de coquinho em árvore no final da  rua. Logo partem em revoada, mas a ansiedade, aliada à dificuldade natural da idade para manejar os eletrônicos, me impede de gravar com qualidade um video da cena do bonito vôo em que os casais costumam ficar alinhados. Lindo se ver!

Logo constato que não se trata dos também barulhentos periquitos-ricos (Brotogeris tirica), que as pessoas costumam chamar de “maritacas”. Esses, assim como os bem-te-vis (Pitangus sulphuratus), até fogem, assustados, com a passagem do bando. São, na verdade, papagaios-verdadeiros (Amazona aestiva), ave bastante inteligente e que não é nativa da região da megalópole, mas que tem sido avistada cada vez com mais frequência por aqui.

E – felizmente – não em gaiolas, onde escutam sempre o mesmo comando: “Dá o pé, Louro”.

O papagaio-verdadeiro, também conhecido como “papagaio-comum”, habita originalmente a região Nordeste, assim como o Brasil Central (estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) até o Rio Grande do Sul. Eles não vieram sozinhos a São Paulo e há gente que suspeita que moradores da cidade trouxeram as aves de suas regiões de origem para criá-las como animais de estimação e que essas depois tenham fugido ou sido soltas pelos “donos”, por receio de uma fiscalização ou por incapacidade de as criar.

Uma coisa é certa: criar animal silvestre – seja ele papagaio, sagui, teiú, onça ou capivara – como doméstico, além de ser crime, é uma judiação e pode levar a desequilíbrios ambientais. Sem falar que o comércio de animais silvestres normalmente está associado a outras atividades criminosas, como o tráfico de drogas e armas, além da exploração de menores, tanto na apreensão dos animais, como em feiras livres, para vendê-los.

Registros

Sandro Von Matter, do Instituto Passarinhar, estima, pelos registros fotográficos na internet, que haja, no mínimo, 1200 papagaios livres na capital paulista. Na enciclopédia eletrônica WikiAves , alimentada por ornintólogos e cidadãos observadores de aves, encontrei 361 registros da espécie em São Paulo.

“Eles começaram a aparecer há uns quatro anos, estimo. Acredito em soltura e até criminosa.  Essas aves estão vindo para cá do Cerrado. Disso eu tenho certeza”, diz Marcelo Pavlenco (foto), da SOS Fauna, ONG que se dedica a combater o comércio de aves silvestres, a reintegrar os animais em seus ambientes de origem, e que escolheu o papagaio-verdadeiro como foco de um projeto que vai lançar, chamado Escola de Papagaios.Cristina Rappa

O projeto – adianta Marcelo – dedica-se ao estudo comportamental de indivíduos apreendidos em situação de guarda doméstica e que estão com níveis de humanização elevada, sua reintegração em vida livre, com monitoramento em pós-soltura, instalação de caixas-ninho e posterior acompanhamento dos filhotes dessas aves em vida livre.

“Já tivemos experiências positivas com filhotes de aves já ‘humanizadas’ e depois reintroduzidas na natureza: nascidos livres, eles demonstraram temer o homem e se adaptar na vida silvestre”, conta o ambientalista.

Apreensão

O papagaio-verdadeiro – uma das aves mais queridas pelos traficantes de animais, talvez por ser muito inteligente e “falante” – não está ameaçado enquanto espécie, mas seu comércio e soltura em ambiente diferente do seu habitat original causam apreensão. “Toda vez que animais são tirados de sua vida livre, no Cerrado, por exemplo, e entram na cadeia do tráfico, eles deixaram de exercer sua função ecológica no ecossistema do Cerrado e isso é preocupante”, explica. “Tentamos amenizar um pouco isso”, diz, referindo-se ao Projeto De Volta pra Casa, criado pela entidade há mais de 9 anos, com a missão de devolver à natureza animais silvestres vítimas do tráfico.

Ameaçados ou não, o problema é sério e a Secretaria de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente reconheceu recentemente (a publicação no Diário Oficial da União se deu no dia 06 de abril) a terceira semana do mês de abril como a “Semana de Estudos para a Proteção dos Papagaios e demais Psitacídeos Brasileiros“. A ideia da criação da Semana é “promover eventos públicos que alertem para a necessidade de preservar a espécie”, informa o Ministério em seu website. Pois, os papagaios são símbolo de aves brasileiras muito ameaçadas pelo tráfico e há espécies deles, como papagaio-charão (Amazona pretrei), papagaio-de-peito-roxo (Amazona vinacea) e papagaio-chauá (Amazona rhodocorytha), bastante vulneráveis. Vamos ajudar a protegê-los?

Aves - SP - papagaio verdadeiro ab18 (3)

Um lobo nada mau

Quando meu marido sugeriu uma viagem à Serra da Canastra, no sudoeste de Minas Gerais, em um feriado, não hesitei um minuto sequer: “ é claro que topo!”. Além de estar há tempos desejando conhecer essa região de lindas paisagens de cerrado, repleta de cachoeiras e aves, lembrei-me de um animal-ícone de lá que há muito me fascina: o lobo-guará.

Marca registrada da região, mas pouco avistado, por ser tímido, movimentar-se durante a noite ou ao amanhecer, evitar o contato com os humanos, por uma sábia razão – já foi bastante caçado. Aliás, animal silvestre esperto já sabe: cruzar com um humano é provavelmente sinal de encrenca e ele só tem a perder.

Além desse motivo, a perda de habitat para a urbanização e a agropecuária fizeram essa espécie entrar para a nada boa categoria de “vulnerável” e até “criticamente ameaçada”, dependendo da região. 

Não nos esqueçamos de que o lobo-guará é um animal de cerrado, e que esse bioma está muito ameaçado. Silenciosamente ameaçado, já que a Amazônia sempre tem muito mais visibilidade, provavelmente pelo seu tamanho e vegetação exuberante. Já o cerrado, com suas árvores baixas e meio “sem-graças”, passou da condição de praticamente ignorado para a de celeiro do Brasil, com a expansão agrícola a partir dos anos 1970, quando os nossos pesquisadores conseguiram corrigir a acidez do seu solo, além de desenvolver novas variedades de grãos e permitir o cultivo com sucesso de soja. Hoje o Brasil está prestes a se tornar o maior produtor mundial da oleaginosa. Isso sem falar nas plantações de cana-de-açúcar e eucalipto, que também se destacam nesse bioma.

Sim, eu sei, é muito importante produzir alimentos, fibras e energia, e se não fosse a agricultura bastante profissional no cerrado o Brasil provavelmente ainda estaria importando comida, mas precisamos procurar conciliar a produção à preservação do ambiente. Para, inclusive, não comprometer a produção no futuro. Sem água não se faz nada.

Outros perigos ainda assombram os lobos: os atropelamentos, que também vitimam praticamente todos os animais silvestres, e os embates com cães domésticos – que eu adoro, como adoro todos os animais, mas reconheço, até porque acolhi vários, que eles, caçadores que são, constituem outra grande ameaça à fauna silvestre.

Mas, voltando à minha viagem à Canastra – que teria dois dias dedicados a expedições de mountain bike com o marido e os amigos, e uma manhã apenas para o avistamento das aves locais -, pedi para o pessoal da pousada no Vale dos Canteiros, próximo a São João Batista do Glória, onde nos hospedaríamos, indicação de um guia de aves. O pedido causou um pouco de estranheza e logo descobri porquê: a atividade de avistar aves – ou birdwatching – ainda é bastante incipiente lá, em comparação com o ecoturismo tradicional, em veículos 4 x 4, e, especialmente, as trilhas de moto.

Ao tratar com Amauri, que me mostraria as aves locais, mencionei o meu desejo de ver um lobo-guará. No que ele me alertou que era bem difícil e que ele mesmo, morando a vida inteira lá, o tinha visto “sete ou oito vezes” apenas.

Às seis da manhã do domingo combinado para a passarinhada, partimos, Amauri e eu, em busca das aves locais, como a campainha-azul, o andarilho, o papa-moscas-do-campo (foto), o topáculo-de-colarinho, o carcará e o galito, entre outros.copia-de-copia-reduzida-de-aves-canastra-papa-mosca-do-campo-2

Não é que, nem dez minutos depois de começarmos a subir a serra, um lindo e grande lobo-guará cruza o nosso caminho. Não acreditei! Que emoção! O que dá desejar algo com força e sinceridade. E ele foi subindo devagarinho, voltando a cabeça e nos olhando de tempos em tempos.

“Depois disto, vamos aproveitar a sua sorte a tentar ver o pato-mergulhão”, propôs, brincando, o Amauri, mencionando uma outra preciosidade bastante difícil de se avistar no Parque Nacional da Serra da Canastra, lugar que abriga a nascente do rio São Francisco, o Velho Chico.

Que galinha que nada, ele é louco por uma frutinha

Apesar da fama de “terror dos galinheiros”, o lobo-guará se alimenta de tudo um pouco e adora uma frutinha. Tanto que existe uma planta que dá no cerrado que passou a ser conhecida como Lobeira (Solanum lycocarpum). Eu mesma vi fezes do lobo cheia de sementes intactas de lobeira, o que faz dele um excelente dispersor de sementes. Alguns passarinhos ainda pegam essas sementes e as tornam a distribuir.

Os lobos ainda comem gramíneas e outras frutas, além de cobras, inclusive as venenosas, e roedores. Mate os lobos-guará e terá um monte de serpentes e ratos na sua propriedade. Eu prefiro os lobos, apesar de acreditar que toda espécie tem sua função na natureza.

E, para dar um pouco mais de informação sobre a espécie, o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) é endêmico – ou seja, existe apenas nesse lugar – da América do Sul, sendo o maior canídeo do continente, podendo atingir 20 e 30 kg de peso e até 90 cm na altura da cernelha. Único integrante do gênero Chrysocyon, estima-se que haja pouco menos de 22 mil indivíduos adultos no Brasil, enquanto devem ocorrer menos de mil desses animais nos vizinhos Argentina (660) e Paraguai (880).

Além de dispersores de sementes, outra característica que assemelha os guarás das aves: costumam ser monogâmicos, apesar de parecerem solitários. Vamos ajudar a preservar esse romântico simpático?! Cuidar da linda Serra da Canastra já é um grande passo para isso.

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A linda Serra da Canastra, terra do lobo-guará e da nascente do rio São Francisco