A triste saga dos gambazinhos órfãos

Quem me acompanha por aqui, em outras mídias sociais, ou me conhece desde criança, sabe que adoro animais. 

Na fazenda, em Arceburgo, no sul de Minas, moram atualmente seis cachorros adotados. Já foram mais, mas foram morrendo (por mordida de cobra, ataque de ouriço, doença ou velhice, entre outros fatores) ao longo dos anos e foram sendo substituídos por outros, doados ou abandonados na estrada rural e que acolhemos.

O problema é que animais domésticos são um grande problema para a fauna silvestre. E cães em matilha agem como uma verdadeira gangue de malfeitores. Especialmente os machos, mesmo sendo castrados. É o instinto de caçadores deles, procuro racionalizar.

E não é que um dia, durante este isolamento imposto pelo coronavírus, acordo com uma gritaria dos cachorros? Constatamos, na manhã seguinte, com tristeza, o motivo da gritaria: haviam caçado e matado uma fêmea de um marsupial pertencente a de uma das quatro espécies de gambás que existem no Brasil e muito comum na região, o de orelhas-brancas.

Zeus e Trovão: parecem angelicais, mas são exímios caçadores de animais silvestres.

E o pior: estava com três filhotes, sendo que um morreu também. Recolho, sob os protestos de Jurandir, o caseiro, os dois pequenos sobreviventes e resolvo tentar criá-los. Afinal, já resgatei e cuidei de murucututu-da-barriga-amarela, carcará, filhotes de jandaia-de-testa-vermelha e de avoante. Todos com sucesso. O que me deixou meio arrogante, acreditando que sempre terei sucesso e que tudo vai dar certo. Esse excesso de otimismo muito me define.

Os gambazinhos eram muito pequenos, mas já tinham algum pelo. Pesquisa entre os biólogos do grupo de aves me leva a uma especialista que me orienta como preparar sua mamadeira e aquecê-los.

Pensei: vou alimentando-os até poder entregá-los aos cuidados de uma ONG especializada no acolhimento de animais silvestres atropelados, órfãos,  vítimas de ataques de cães ou de caça, entre outros fatores. Como a  Associação Mata Ciliar, de Jundiaí,  que conheço pessoalmente, apoio e com quem fiz contato. Mas, em época de isolamento, as entidades estão com poucos braços e não encontrei ninguém a quem pudesse  entregar os pequenos. Pensei: vou cuidando deles até poder soltá-los na natureza. Mas isso levaria uns dois meses, avaliou a bióloga que estava me orientando.  

Assim, ao longo dos dias seguintes, minha rotina era preparar a mamadeira com leite, ovos, mel e uma pitada de sal, amorná-la e dá-la aos gambazinhos. Depois massagear sua barriguinha, para que evacuassem. Em seguida, esquentar uma garrafa d’água e colocá-la dentro da caixa deles, que já tinha cobertor e um boneco do Sapo Caco, doação de Luara, neta da Rosana que trabalha na minha casa em São Paulo e que também gosta muito de animais.

O gambazinho e o sapo Caco doado pela Luara

Tive esperança de que uma das minhas quatro gatas os adotassem e passassem a produzir leite, mas tive receio de deixá-los muito tempo com elas sem minha supervisão. Vi, dias depois, um caso desses no Facebook: uma gata com uma ninhada adotou um gambazinho, que vivia pendurado no pescoço dela. O problema é que as minhas são castradas e nunca tiveram filhotes. Levaria algum tempo para despertar esse instinto maternal.

Só sei que quatro dias depois, o gambazinho menor amanheceu morto, gelado. Fiquei muito triste e me sentindo culpada. Acho que não aqueci o suficiente a caixa deles e com a entrada do outono, as noites ficaram mais frias.

Decidi me dedicar muito ao sobrevivente e não bobear com a temperatura. Era uma graça de serzinho, muito meigo, que encantou a todos, especialmente à Rosana e à Rosa, da fazenda, que já tinha me ajudado a cuidar da coruja e do gavião, o carcará que apelidei de Gumercindo.

Bom, não é que após preparar mais uma das cerca de seis mamadas do dia, constato que o pequeno tinha morrido também? Fiquei muito triste, decepcionada pelo meu fracasso. 

A bióloga me consola dizendo que é realmente muito difícil para nós humanos cuidar deles, que eles costumam viver protegidos e aquecidos dentro de uma bolsa na mãe.

Desmistificando

Por favor, não confunda “os meus” gambazinhos com aqueles gambás dos desenhos animados, brancos-e-pretos, que soltam um cheiro ruim ao se sentirem ameaçados.  Esta má fama, acredito, pode contribuir para uma injustiça contra os marsupiais.

Gambá-de-orelha-branca avistado anteriormente lá no jardim da fazenda

Estes gambás de que cuidei são os de orelha-branca (Didelphis albiventris), muito comuns em boa parte do Brasil e que se alimentam de frutas, filhotes de aves, cobras, lagartos, insetos, anfíbios e cereais. A espécie é essencial no equilíbrio de ecossistemas, tendo grande importância ecológica na natureza.

Recentemente, pesquisa feita no Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu, interior de SP, mostrou que, além de atuarem na distribuição de sementes, no controle da população de cobras, carrapatos, aranhas e escorpiões, e como bioindicadores da qualidade de habitats naturais, agora revelam-se agentes polinizadores e grandes dispersores de sementes. Isso mesmo: contribuem para a fertilidade das plantas e recomposição das matas.

E cerca de um mês após o episódio do resgate dos gambazinhos, em uma manhã, caminhando na volta da passarinhada pela zona rural de Arceburgo, os cachorros Tom e Trovão, que me acompanhavam (e perturbaram até que pouco o programa), saem correndo atrás de um tatu-peba (Euphractus sexcinctus), um dos muitos animais silvestres encontrados por aqui. 

O pobre ficou imóvel de pavor e eu consegui afastar, com algum esforço, os cachorros. Ufa! Mais serzinho um salvo, para compensar o triste destino da família de gambás. A natureza agradece, a nossa saúde e bem estar, idem. Afinal, desequilíbrios na biodiversidade e uma relação inadequada com animais silvestres podem levar ao surgimento de doenças como a com que estamos convivendo agora.

Tatu-pega que Tom detectou – e assustou – no pasto.

Um lobo nada mau

Quando meu marido sugeriu uma viagem à Serra da Canastra, no sudoeste de Minas Gerais, em um feriado, não hesitei um minuto sequer: “ é claro que topo!”. Além de estar há tempos desejando conhecer essa região de lindas paisagens de cerrado, repleta de cachoeiras e aves, lembrei-me de um animal-ícone de lá que há muito me fascina: o lobo-guará.

Marca registrada da região, mas pouco avistado, por ser tímido, movimentar-se durante a noite ou ao amanhecer, evitar o contato com os humanos, por uma sábia razão – já foi bastante caçado. Aliás, animal silvestre esperto já sabe: cruzar com um humano é provavelmente sinal de encrenca e ele só tem a perder.

Além desse motivo, a perda de habitat para a urbanização e a agropecuária fizeram essa espécie entrar para a nada boa categoria de “vulnerável” e até “criticamente ameaçada”, dependendo da região. 

Não nos esqueçamos de que o lobo-guará é um animal de cerrado, e que esse bioma está muito ameaçado. Silenciosamente ameaçado, já que a Amazônia sempre tem muito mais visibilidade, provavelmente pelo seu tamanho e vegetação exuberante. Já o cerrado, com suas árvores baixas e meio “sem-graças”, passou da condição de praticamente ignorado para a de celeiro do Brasil, com a expansão agrícola a partir dos anos 1970, quando os nossos pesquisadores conseguiram corrigir a acidez do seu solo, além de desenvolver novas variedades de grãos e permitir o cultivo com sucesso de soja. Hoje o Brasil está prestes a se tornar o maior produtor mundial da oleaginosa. Isso sem falar nas plantações de cana-de-açúcar e eucalipto, que também se destacam nesse bioma.

Sim, eu sei, é muito importante produzir alimentos, fibras e energia, e se não fosse a agricultura bastante profissional no cerrado o Brasil provavelmente ainda estaria importando comida, mas precisamos procurar conciliar a produção à preservação do ambiente. Para, inclusive, não comprometer a produção no futuro. Sem água não se faz nada.

Outros perigos ainda assombram os lobos: os atropelamentos, que também vitimam praticamente todos os animais silvestres, e os embates com cães domésticos – que eu adoro, como adoro todos os animais, mas reconheço, até porque acolhi vários, que eles, caçadores que são, constituem outra grande ameaça à fauna silvestre.

Mas, voltando à minha viagem à Canastra – que teria dois dias dedicados a expedições de mountain bike com o marido e os amigos, e uma manhã apenas para o avistamento das aves locais -, pedi para o pessoal da pousada no Vale dos Canteiros, próximo a São João Batista do Glória, onde nos hospedaríamos, indicação de um guia de aves. O pedido causou um pouco de estranheza e logo descobri porquê: a atividade de avistar aves – ou birdwatching – ainda é bastante incipiente lá, em comparação com o ecoturismo tradicional, em veículos 4 x 4, e, especialmente, as trilhas de moto.

Ao tratar com Amauri, que me mostraria as aves locais, mencionei o meu desejo de ver um lobo-guará. No que ele me alertou que era bem difícil e que ele mesmo, morando a vida inteira lá, o tinha visto “sete ou oito vezes” apenas.

Às seis da manhã do domingo combinado para a passarinhada, partimos, Amauri e eu, em busca das aves locais, como a campainha-azul, o andarilho, o papa-moscas-do-campo (foto), o topáculo-de-colarinho, o carcará e o galito, entre outros.copia-de-copia-reduzida-de-aves-canastra-papa-mosca-do-campo-2

Não é que, nem dez minutos depois de começarmos a subir a serra, um lindo e grande lobo-guará cruza o nosso caminho. Não acreditei! Que emoção! O que dá desejar algo com força e sinceridade. E ele foi subindo devagarinho, voltando a cabeça e nos olhando de tempos em tempos.

“Depois disto, vamos aproveitar a sua sorte a tentar ver o pato-mergulhão”, propôs, brincando, o Amauri, mencionando uma outra preciosidade bastante difícil de se avistar no Parque Nacional da Serra da Canastra, lugar que abriga a nascente do rio São Francisco, o Velho Chico.

Que galinha que nada, ele é louco por uma frutinha

Apesar da fama de “terror dos galinheiros”, o lobo-guará se alimenta de tudo um pouco e adora uma frutinha. Tanto que existe uma planta que dá no cerrado que passou a ser conhecida como Lobeira (Solanum lycocarpum). Eu mesma vi fezes do lobo cheia de sementes intactas de lobeira, o que faz dele um excelente dispersor de sementes. Alguns passarinhos ainda pegam essas sementes e as tornam a distribuir.

Os lobos ainda comem gramíneas e outras frutas, além de cobras, inclusive as venenosas, e roedores. Mate os lobos-guará e terá um monte de serpentes e ratos na sua propriedade. Eu prefiro os lobos, apesar de acreditar que toda espécie tem sua função na natureza.

E, para dar um pouco mais de informação sobre a espécie, o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) é endêmico – ou seja, existe apenas nesse lugar – da América do Sul, sendo o maior canídeo do continente, podendo atingir 20 e 30 kg de peso e até 90 cm na altura da cernelha. Único integrante do gênero Chrysocyon, estima-se que haja pouco menos de 22 mil indivíduos adultos no Brasil, enquanto devem ocorrer menos de mil desses animais nos vizinhos Argentina (660) e Paraguai (880).

Além de dispersores de sementes, outra característica que assemelha os guarás das aves: costumam ser monogâmicos, apesar de parecerem solitários. Vamos ajudar a preservar esse romântico simpático?! Cuidar da linda Serra da Canastra já é um grande passo para isso.

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A linda Serra da Canastra, terra do lobo-guará e da nascente do rio São Francisco

Animais e esportes

Leio nesta quarta-feira (10 de agosto) simpática matéria no Estadão sobre animais silvestres que estariam “participando” destas Olimpíadas no Rio. Explico: tratam-se de aves marinhas que acompanham as competições a vela entre outras, corujas buraqueiras que acompanham o vai-e-vem dos atletas o Campo Olímpico, ninhos de quero-queros no campo de golfe, jacarés-de-papo-amarelo, bicho-preguiça, entre outros.

Animais interagindo com esportes é um assunto que tem me chamado a atenção. Neste final de semana, treinando na Ciclovia da Marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo, observei, além das já tradicionais e atrevidas capivaras, dos destemidos quero-queros e dos mais do que previsíveis urubus, outras aves, como garças-brancas grandes e pequenas, bem-te-vis, pombões e até um pernilongo-de-costas-brancas, espécie que nunca pensei encontrar ao longo do mal-cheiroso e poluído rio.

Estariam as aves adaptando-se e buscando comida fácil nesses locais urbanos, apesar da forte poluição, que incomoda muito a nós, humanos? Sendo que somos nós os causadores dessa sujeira toda. A quantidade de garrafas pets, pneus e até sofás boiando no rio, formando verdadeiras ilhas de lixo, é descomunal. Sem falar no esgoto e lixo industrial que é jogado sem cerimônia na água.

Segundo a matéria no jornal, nestes jogos olímpicos foram tomados cuidados pela equipe de engenheiros agrônomos e ambientais que cuidam dos espaços, como proteger ninhos de corujas e quero-queros, retirar animais domésticos, castrá-los e encaminhá-los para a adoção, e até organizar tours guiados para as pessoas poderem conhecer a biodiversidade do centro olímpico. Bela iniciativa!Cristina Rappa

E que cuidados são tomados na nossa ciclovia, opção de lazer e esporte para muitos paulistanos? Que cumpre seu papel, apesar de suas limitações, como interrupções para obras intermináveis, lombadas, piso com irregularidades, além do mau-cheiro. Mas é o que temos para hoje, como dizem.

Pergunto porque na ciclovia há riscos de atropelamentos, ameaçando a integridade e a vida dos animais e dos ciclistas. Afinal, os animais cruzam a pista e alguns – os de pequeno porte, como sapos e ratos, e filhotes, inexperientes – são de fato atropelados. Todas as vezes que pedalo vejo um animal esmagado na pista. Aliás, todos as vezes que pedalo – em qualquer lugar – observo animais atropelados.

O regulamento da Ciclovia da Marginal do rio Pinheiros diz que é proibido “caçar, molestar ou alimentar os animais existentes no logradouro” e que é dever do ciclista “preservar a flora e a fauna existentes na ciclovia”. De fato, nunca vi ninguém alimentando, caçando ou molestando animais lá – a não ser quando, inadvertidamente, atropela um. Até porque quem vai à ciclovia está em busca de se distrair ou fazer esporte.

Ainda mantenho a esperança de um dia ver o rio Tietê limpo, o que é bom para todos: a população, os animais e os negócios da cidade. Até então vamos fazendo a nossa parte, não jogando lixo fora das lixeiras, plantando e cuidando de árvores, e respeitando os animais.