Um lobo nada mau

Quando meu marido sugeriu uma viagem à Serra da Canastra, no sudoeste de Minas Gerais, em um feriado, não hesitei um minuto sequer: “ é claro que topo!”. Além de estar há tempos desejando conhecer essa região de lindas paisagens de cerrado, repleta de cachoeiras e aves, lembrei-me de um animal-ícone de lá que há muito me fascina: o lobo-guará.

Marca registrada da região, mas pouco avistado, por ser tímido, movimentar-se durante a noite ou ao amanhecer, evitar o contato com os humanos, por uma sábia razão – já foi bastante caçado. Aliás, animal silvestre esperto já sabe: cruzar com um humano é provavelmente sinal de encrenca e ele só tem a perder.

Além desse motivo, a perda de habitat para a urbanização e a agropecuária fizeram essa espécie entrar para a nada boa categoria de “vulnerável” e até “criticamente ameaçada”, dependendo da região. 

Não nos esqueçamos de que o lobo-guará é um animal de cerrado, e que esse bioma está muito ameaçado. Silenciosamente ameaçado, já que a Amazônia sempre tem muito mais visibilidade, provavelmente pelo seu tamanho e vegetação exuberante. Já o cerrado, com suas árvores baixas e meio “sem-graças”, passou da condição de praticamente ignorado para a de celeiro do Brasil, com a expansão agrícola a partir dos anos 1970, quando os nossos pesquisadores conseguiram corrigir a acidez do seu solo, além de desenvolver novas variedades de grãos e permitir o cultivo com sucesso de soja. Hoje o Brasil está prestes a se tornar o maior produtor mundial da oleaginosa. Isso sem falar nas plantações de cana-de-açúcar e eucalipto, que também se destacam nesse bioma.

Sim, eu sei, é muito importante produzir alimentos, fibras e energia, e se não fosse a agricultura bastante profissional no cerrado o Brasil provavelmente ainda estaria importando comida, mas precisamos procurar conciliar a produção à preservação do ambiente. Para, inclusive, não comprometer a produção no futuro. Sem água não se faz nada.

Outros perigos ainda assombram os lobos: os atropelamentos, que também vitimam praticamente todos os animais silvestres, e os embates com cães domésticos – que eu adoro, como adoro todos os animais, mas reconheço, até porque acolhi vários, que eles, caçadores que são, constituem outra grande ameaça à fauna silvestre.

Mas, voltando à minha viagem à Canastra – que teria dois dias dedicados a expedições de mountain bike com o marido e os amigos, e uma manhã apenas para o avistamento das aves locais -, pedi para o pessoal da pousada no Vale dos Canteiros, próximo a São João Batista do Glória, onde nos hospedaríamos, indicação de um guia de aves. O pedido causou um pouco de estranheza e logo descobri porquê: a atividade de avistar aves – ou birdwatching – ainda é bastante incipiente lá, em comparação com o ecoturismo tradicional, em veículos 4 x 4, e, especialmente, as trilhas de moto.

Ao tratar com Amauri, que me mostraria as aves locais, mencionei o meu desejo de ver um lobo-guará. No que ele me alertou que era bem difícil e que ele mesmo, morando a vida inteira lá, o tinha visto “sete ou oito vezes” apenas.

Às seis da manhã do domingo combinado para a passarinhada, partimos, Amauri e eu, em busca das aves locais, como a campainha-azul, o andarilho, o papa-moscas-do-campo (foto), o topáculo-de-colarinho, o carcará e o galito, entre outros.copia-de-copia-reduzida-de-aves-canastra-papa-mosca-do-campo-2

Não é que, nem dez minutos depois de começarmos a subir a serra, um lindo e grande lobo-guará cruza o nosso caminho. Não acreditei! Que emoção! O que dá desejar algo com força e sinceridade. E ele foi subindo devagarinho, voltando a cabeça e nos olhando de tempos em tempos.

“Depois disto, vamos aproveitar a sua sorte a tentar ver o pato-mergulhão”, propôs, brincando, o Amauri, mencionando uma outra preciosidade bastante difícil de se avistar no Parque Nacional da Serra da Canastra, lugar que abriga a nascente do rio São Francisco, o Velho Chico.

Que galinha que nada, ele é louco por uma frutinha

Apesar da fama de “terror dos galinheiros”, o lobo-guará se alimenta de tudo um pouco e adora uma frutinha. Tanto que existe uma planta que dá no cerrado que passou a ser conhecida como Lobeira (Solanum lycocarpum). Eu mesma vi fezes do lobo cheia de sementes intactas de lobeira, o que faz dele um excelente dispersor de sementes. Alguns passarinhos ainda pegam essas sementes e as tornam a distribuir.

Os lobos ainda comem gramíneas e outras frutas, além de cobras, inclusive as venenosas, e roedores. Mate os lobos-guará e terá um monte de serpentes e ratos na sua propriedade. Eu prefiro os lobos, apesar de acreditar que toda espécie tem sua função na natureza.

E, para dar um pouco mais de informação sobre a espécie, o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) é endêmico – ou seja, existe apenas nesse lugar – da América do Sul, sendo o maior canídeo do continente, podendo atingir 20 e 30 kg de peso e até 90 cm na altura da cernelha. Único integrante do gênero Chrysocyon, estima-se que haja pouco menos de 22 mil indivíduos adultos no Brasil, enquanto devem ocorrer menos de mil desses animais nos vizinhos Argentina (660) e Paraguai (880).

Além de dispersores de sementes, outra característica que assemelha os guarás das aves: costumam ser monogâmicos, apesar de parecerem solitários. Vamos ajudar a preservar esse romântico simpático?! Cuidar da linda Serra da Canastra já é um grande passo para isso.

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A linda Serra da Canastra, terra do lobo-guará e da nascente do rio São Francisco

A luta para salvar os bicudos, pássaros de canto flauteado

Todo o seu crime – ou pecado, diriam os mais religiosos – foi ter um canto lindo e muito melodioso. Pronto! Logo virou alvo dos caçadores e traficantes de aves. O hábito de ser territorialista, gostando de demarcar uma área de uns 100 metros de diâmetro – que costuma defender com unhas e bicos – e de estar sempre no mesmo lugar, também não ajudou.

Assim, fora em algumas áreas protegidas, como o Parque Nacional das Emas, no sudoeste do Goiás, o bicudo (Sporophila maximiliani ou orizoborus maximiliani maximiliani), um pássaro preto cuja outra característica mais marcante, além do lindo canto, é o bico que lhe dá nome, chegou à condição de “criticamente ameaçado” (CR) pelo Ibama. O órgão ambiental oficial estima que restem apenas não mais do que 200 indivíduos na natureza. No Estado de São Paulo, onde também é conhecido como bicudo-do-norte, bicudo-preto ou bicudo-verdadeiro, foi considerado extinto há cerca de duas décadas, o que levou especialistas a desenvolverem um programa de preservação, com a criação de aves da espécie em cativeiro, para reprodução. O motivo era mais do que justo.

Onze de novembro foi o grande dia: de soltura na natureza, em área protegida no estado da região Sudeste, do primeiro dos dez casais criados em cativeiro dentro do programa de preservação. Quando a porta do viveiro gaiolas foi aberta, as aves, não acostumadas com a liberdade, estranharam e não se aventuraram a ir longe. Aos poucos, foram se arriscando a explorar mais território, sempre monitoradas pelos ornitólogos. Em liberdade, terão que aprender a buscar por alimento e a se defender de predadores, como gaviões e corujas.

O local não pode ser divulgado para não chamar a atenção dos caçadores. Sim, eles ainda existem e são implacáveis, mesmo em pleno século 21 e com tudo o que se divulga sobre a importância de se proteger a nossa biodiversidade. A ganância fala mais alto – um bicudo, em função do seu canto que lembra uma flauta, pode valer cerca de R$ 100 mil.

Força, bicudo! Topetinho Magnífico, seu companheiro no meu livro infantil de mesmo nome, e todos nós estamos torcendo por você! Quem sabe um dia ainda não tenho a felicidade de apreciar o canto de um de vocês em liberdade, em uma das minhas observações de aves?

Príncipe Maximiliano

O nome científico – Sporophila maxiliani – foi dado em homenagem ao príncipe e naturalista austríaco Maximilian zu Wied que veio ao Brasil no século 18, em comitiva da sua conterrânea, a Princesa Leopoldina, primeira esposa de Dom Pedro I. Ela também uma amante da natureza. Obras com as observações e ilustrações de Maximilian podem ser apreciadas em São Paulo, na lindíssima exposição permanente Coleção Brasiliana, no Instituto Itaú Cultural.

E como “sporos” vem de sementes e “philos” de amigo, o nome significa aquele que gosta de sementes de Maximiliano. A informação é do site WikiAves. Isso porque o pássaro habita pastos alagados e arrozais e aprecia as sementes de alguns tipos de capim, como o navalha e o navalha-de-macaco.