A volta do corujão

Cristina Rappa

Lá estou eu novamente às voltas com corujas. Animal fascinante esse; não dá para negar.

Quem acompanha minhas histórias, já deve ter lido que, há uns anos, eu e meu irmão resgatamos da cerca de arame farpado lá na fazenda em Arceburgo, sul de Minas, uma coruja da espécie murucututu-da-barriga-amarela (Pulsatrix koeniswaldiana). Muito dócil, logo nos apegamos a ela, mas a soltamos na beira da mata em duas semanas, quando constatamos que sua asa estava curada e que poderia se virar sozinha. Não faria sentido tratar como doméstico um animal silvestre sadio.

Acho que esse episódio foi o click para o meu interesse por aves. Desde então, procuro avistá-las, estudá-las, observar seu comportamento e também registrá-las, apesar do meu pouco talento para a fotografia. E começaram a surgir as viagens específicas para a observação de aves em nosso Brasil, onde foram registradas até agora pouco mais de 1900 espécies, só ficando atrás da Colômbia nesse quesito.

Aves - Marimbondo - buraqueira fazendo passo de balé

Coruja buraqueira fazendo passo de bailarina

Em relação às corujas, no entanto, perdemos feio: das 235 espécies do mundo, apenas 23, ou seja, nem 10%, são encontradas no Brasil, aprendi durante apresentação na última edição do Avistar, o congresso de observadores de aves que ocorre anualmente em São Paulo.  E, como a maioria possui hábitos noturnos, quase nunca as vemos. Talvez venha daí o seu mistério e os mitos que as cercam. A única que é mais popular é a simpática buraqueira (Athene cunicularia), em função de seus hábitos diurnos.

Bom, voltemos à “minha coruja”. Desde que a soltamos,  toda vez que ia para Minas pensava se a tornaria a ver, fantasiava que ela iria nos visitar etc.

Em 2015, em um desses programas de avistar aves por lá, com meus amigos Ademir, Aline Patrícia e seu marido Gerson, não é que a primeira ave que vimos, ao amanhecer dentro da mata da Grama, foi um murucututu? Observava-nos de esgueio, do alto de uma árvore, linda. Como estava ainda um pouco escuro e ela era tão grande (esta espécie mede de 40 a 44 cm), Gerson pensou inicialmente tratar-se de um primata. “Não; é a murucututu, o corujão”, falei.

Ficamos paralisados, como que hipnotizados, mas conseguimos fotografá-la. A ave, que inaugurou com chave-de-ouro a passarinhada do dia, foi gentil, permanecendo por uns dez minutos no mesmo galho e depois foi embora.

No feriado de Corpus Christi deste ano, fomos para Minas e eu brincava com os cachorros no terraço ao anoitecer, quando escutei um som familiar. Era com certeza uma coruja. Mas qual? A noite, apesar de estrelada, estava escura e eu não conseguia enxergá-la, mas o som vinha de uma árvore muito próxima.

A solução foi gravar o som da nossa “conversa” e colocar no WikiAves, que confirmou ser a murucututu. Que máximo! Seria a mesma da qual cuidamos, logo perguntaram a Rosa, a moça que ajudou a tratar dela, e o Ademir?

Acho que sobre isso nunca teremos certeza, mas fiquei contente de saber que ainda há corujas dessa espécie por lá. A murucututu pode virar a espécie-símbolo da Fazenda Marimbondo, que abriga ainda muitas gralhas-do-campo, inúmeros pica-paus (do-campo, verde-barrado, branco, de-banda-branca, de testa-vermelha, entre outros), psitacídeos (jandaias-de-testa-vermelha e periquitos-ricos), pipiras, sabiás, sanhaçus, saíras, tico-ticos, corruíras, gaviões, pombas, seriemas e tudo o mais.

Outras corujas

Cristina Rappa

A fêmea do mocho-dos-banhados, em Americana

Na minha fascinação por corujas, fui a Americana, na região de Campinas, avistar um casal de mochos-do-banhado (Asio flammeus), guiada por Gustavo Pinto, que tem desenvolvido um trabalho de conscientização da população local para que evite colocar fogo em terrenos onde a espécie faz ninho, além de se dedicar a reflorestar áreas, visando a manter habitat para a espécie.

E ainda não desisto de tentar avistar corujas em meu bairro em São Paulo. Quando, com tristeza, encontrei uma orelhuda (Asio clamator) morta, provavelmente por eletrocussão, caída na calçada bem embaixo da fiação, tive a certeza de que elas também estão por aqui, nos bairros mais arborizados da grande metrópole, onde parece não haver espaço para a vida silvestre, em meio a tanta poluição, especialmente sonora. Por quê se buzina tanto, meu Deus?!

Para finalizar, uma frase do nosso Guimarães Rosa: “ A coruja não agoura: o que ela faz é saber os segredos da noite”.

O corujão

É engraçado como certos animais carregam rótulos no imaginário popular. Um deles é a coruja, animal normalmente associado a mistério e magia e personagem certo em filmes e livros com bruxas, como a Hedwig, companheira de Harry Potter.

Eu, ao contrário, sempre tive simpatia por corujas. Não que tivesse muita experiência com elas e sempre tive consciência de que não devemos interferir com animais silvestres. Estava apenas acostumada com a presença das “buraqueiras”, me observando ao passar na estrada, dos morões das cercas.

Eis que, no feriado de 7 de setembro, deparo, caminhando no início da noite, com uma coruja enorme e linda, da espécie Murucututu da Barriga Amarela (Pulsatrix perspicillata pulsatrix), também conhecida como Corujão, por medir mais de 40 cm. Estava presa pela asa na cerca de arame farpado de uma propriedade rural no sul de Minas. Viria a descobrir mais tarde, lendo um estudo de biólogos da USP, que essa é uma das principais causas de morte de corujas no Brasil, após atropelamentos e eletrocussões.
Meu irmão cortou o arame e libertamos a pobre da posição desconfortável de ficar dependurada pela asa na cerca. Ela parecia nos agradecer com o olhar e logo grudou no meu braço e colo, o que – confesso – foi um pouco dolorido, pois suas garras eram afiadas como as de um gavião. Nada mais natural para quem tem que agarrar seu alimento.

No dia seguinte de manhã, a levamos ao veterinário para retirar o resto do arame farpado ainda preso na asa e ouvimos o lacônico veredicto: “É uma pena, mas os músculos da asa parece que foram afetados e ela não deve voar mais”.

De volta à casa, deixei-a empoleirada no espaldar da cadeira da lavanderia, aberta para o jardim. Ela me olhava com o olhar interessado, bebia água, mas não comia. Como alimentar um animal silvestre acostumado a caçar o próprio alimento? Uma pesquisa pela internet e redes sociais e várias sugestões aparecem: carne, insetos, roedores, morcegos…

A natureza se encarregou e, ao cair da noite, ela já dava as primeiras tímidas voadas e até caçou um passarinho desavisado (o que me entristeceu, mas faz parte da natureza, pensei). Depois de cuidada e recuperada, em uma semana conseguiu alçar vôos mais longos e voltar para o mato.

Fiquei feliz – afinal, lugar de animal silvestre é na natureza, solto – e também um pouco saudosa, pois me apeguei a esse ser fascinante, que me observava atentamente, tentava se comunicar comigo e virava a cabeça ao ouvir a minha voz. E – acreditem – adorava um cafuné. Não é à toa que encanta as bruxas.
E, naquelas coisas da vida, no mesmo dia em que a coruja voltou para a natureza, presencio, revoltada, uma seriema ser atropela em uma estrada no interior de São Paulo, por um motorista veloz e distraído. Pensei: “Bom, não é todo dia que conseguimos salvar um animal silvestre”. “Minha” coruja teve mais sorte do que essa pobre seriema. Uma vida recuperada e outra que se vai. Em ambos os casos, pela ação do homem.

A coruja me observando ao telefoneA coruja me observando ao telefone.

Eu não vou conseguir salvar todos os animais silvestres de acidentes como esses, mas se puder ajudar a combater, com informação e educação, que lugar de animal silvestre é na natureza e que o tráfico e aprisionamento são crimes, já estou fazendo a minha parte.

Sobre as corujas

Corujas, especialmente as noturnas, costumam estar associadas a estórias de magia e mau augúrio, superstição boba. Os gregos, pelo contrário, não só as valorizavam como aves benfeitoras, como as consideravam símbolo de sabedoria.

O fato é que essa ave totalmente inofensiva é muito útil para o equilíbrio biológico, especialmente de zonas rurais. Pois se alimenta de ratos e outros roedores, como os morcegos hematófagos. Sem as corujas, a população de roedores seria incontrolável, desolando lavouras e celeiros de grãos, e transmitindo doenças.