Sobre urubus brincalhões e boas vidas

Cristina Rappa

Nem bem chegamos para ficar hospedados na casa de campo de um amigo no Uruguai, o anfitrião foi me mostrar, orgulhoso e sabendo que eu me interessava por aves, um dos destaques da propriedade: umas águias que costumavam ficar em umas pedras no alto, em morro atrás da casa.

Logo fui buscar, animada, o binóculo, para checar que águia era aquela, se seria a Chilena. Qualquer uma seria bem bacana de avistar. Águias são aves tão lindas e imponentes e eu nunca tinha visto uma até aquela época.

Ao focar nas pedras, falei para o meu amigo: “sinto te informar, mas não se tratam de águias e sim de urubus”. “Mas não urubus comuns e sim os de-cabeça-vermelha”, emendei, já me arrependendo por ter acabado com que ele acreditava ser um dos charmes do lugar, que é de fato lindo, com ou sem águias. “Eu e minha boca”, pensei enquanto meu marido me recriminava com o olhar.

Mais tarde pensei: por que não devemos nos orgulhar dos urubus? Que estigma carregam essas criaturas pacíficas que são tão úteis para o planeta, já que não caçam e matam e dão cabo das carcaças de animais mortos!

Como se alimentam de carne em estado de putrefação, essas aves de rapina são muito importantes para o equilíbrio ecológico e a saúde pública, pois evitam a disseminação de doenças. Apenas quando não encontram carniça disponível, alimentam-se de matéria orgânica em decomposição, pequenos roedores, sapos, ovos e lagartos.

O nome científico do urubu-de-cabeça-vermelha, por exemplo, Cathartes aura, significa “urubu limpador”, já que kathartës, katharizö em grego é limpador, para limpar; e aura ou aurouá é o nome nativo mexicano para urubu, ave da família Cathartidae. A fonte é a enciclopédia das aves WikiAves.

Farra nos carros

No início deste ano, visitando o Parque Nacional de Everglades, na Flórida, nos Estados Unidos, a família de aves que vi em maior quantidade era a dos urubus.

Muito simpáticos, aproximavam-se das pessoas querendo puxar conversa. Ou pedir comida, diriam os céticos. Mas como eles se alimentam basicamente de animais mortos e a multa para quem dá comida aos animais silvestres no parque é de US$ 5 mil, não acredito que eles associem humanos a ganhar comida.

Uma cena constante e curiosa no Everglades envolvendo os urubus é que eles gostam de ficar em cima dos carros dos turistas que estão estacionados. Como podem riscar e danificar a pintura dos veículos, logo aparecem os funcionários do parque tocando-os de lá e oferecendo umas capas para os motoristas cobrirem seus carros.

E como há urubus na Flórida! Curioso, já que, diferentemente do Brasil, quase não se veem animais mortos atropelados. Depois de vários dias lá, só vi um esquilinho atropelado em um avenida. Pelo contrário, testemunhei cenas como um carro de polícia parando o trânsito de um cruzamento de duas avenidas para uma garça-branca-pequena atravessar, um caminhão freando vigorosamente para um pato-do-mato atravessar com calma outra avenida, e carros pararem em uma rodovia para uma família de patos cruzar.

Pelo excesso de comida disponível nos EUA, devem se alimentar de resto de comida de humanos mesmo.

E, para se refrescarem do calor nesse estado norte-americano cujas temperaturas passam facilmente dos trinta graus em boa parte do ano, os bon-vivants gostam de entrar nas inúmeras lagoas existentes na Flórida.

Vendo a cena dos bando de urubus-de-cabeça-vermelha se refrescando em lago de campo de golfe, lembrei-me de uma afirmação da filha bióloga de uma amiga, de que não seria má ideia reencarnar em um urubu, que vive tranquilo, sem se preocupar se vão caçá-lo, tendo alimento à vontade…

A propósito, avistei duas espécies de águias agora nos EUA: a pescadora (Pandion haliaetus) que, como o próprio nome indica, alimenta-se de peixes e, assim, é facilmente encontrada próxima a rios e lagos, e que também pode ser vista no Brasil; e a que é um dos símbolos dos país norte-americano, a “Bald Eagle” (Haliaeetus leucocephalus).

Magníficas! Mas nem por isso continuo gostando menos dos urubus!

Cristina Rappa

 

A volta do corujão

Cristina Rappa

Lá estou eu novamente às voltas com corujas. Animal fascinante esse; não dá para negar.

Quem acompanha minhas histórias, já deve ter lido que, há uns anos, eu e meu irmão resgatamos da cerca de arame farpado lá na fazenda em Arceburgo, sul de Minas, uma coruja da espécie murucututu-da-barriga-amarela (Pulsatrix koeniswaldiana). Muito dócil, logo nos apegamos a ela, mas a soltamos na beira da mata em duas semanas, quando constatamos que sua asa estava curada e que poderia se virar sozinha. Não faria sentido tratar como doméstico um animal silvestre sadio.

Acho que esse episódio foi o click para o meu interesse por aves. Desde então, procuro avistá-las, estudá-las, observar seu comportamento e também registrá-las, apesar do meu pouco talento para a fotografia. E começaram a surgir as viagens específicas para a observação de aves em nosso Brasil, onde foram registradas até agora pouco mais de 1900 espécies, só ficando atrás da Colômbia nesse quesito.

Aves - Marimbondo - buraqueira fazendo passo de balé

Coruja buraqueira fazendo passo de bailarina

Em relação às corujas, no entanto, perdemos feio: das 235 espécies do mundo, apenas 23, ou seja, nem 10%, são encontradas no Brasil, aprendi durante apresentação na última edição do Avistar, o congresso de observadores de aves que ocorre anualmente em São Paulo.  E, como a maioria possui hábitos noturnos, quase nunca as vemos. Talvez venha daí o seu mistério e os mitos que as cercam. A única que é mais popular é a simpática buraqueira (Athene cunicularia), em função de seus hábitos diurnos.

Bom, voltemos à “minha coruja”. Desde que a soltamos,  toda vez que ia para Minas pensava se a tornaria a ver, fantasiava que ela iria nos visitar etc.

Em 2015, em um desses programas de avistar aves por lá, com meus amigos Ademir, Aline Patrícia e seu marido Gerson, não é que a primeira ave que vimos, ao amanhecer dentro da mata da Grama, foi um murucututu? Observava-nos de esgueio, do alto de uma árvore, linda. Como estava ainda um pouco escuro e ela era tão grande (esta espécie mede de 40 a 44 cm), Gerson pensou inicialmente tratar-se de um primata. “Não; é a murucututu, o corujão”, falei.

Ficamos paralisados, como que hipnotizados, mas conseguimos fotografá-la. A ave, que inaugurou com chave-de-ouro a passarinhada do dia, foi gentil, permanecendo por uns dez minutos no mesmo galho e depois foi embora.

No feriado de Corpus Christi deste ano, fomos para Minas e eu brincava com os cachorros no terraço ao anoitecer, quando escutei um som familiar. Era com certeza uma coruja. Mas qual? A noite, apesar de estrelada, estava escura e eu não conseguia enxergá-la, mas o som vinha de uma árvore muito próxima.

A solução foi gravar o som da nossa “conversa” e colocar no WikiAves, que confirmou ser a murucututu. Que máximo! Seria a mesma da qual cuidamos, logo perguntaram a Rosa, a moça que ajudou a tratar dela, e o Ademir?

Acho que sobre isso nunca teremos certeza, mas fiquei contente de saber que ainda há corujas dessa espécie por lá. A murucututu pode virar a espécie-símbolo da Fazenda Marimbondo, que abriga ainda muitas gralhas-do-campo, inúmeros pica-paus (do-campo, verde-barrado, branco, de-banda-branca, de testa-vermelha, entre outros), psitacídeos (jandaias-de-testa-vermelha e periquitos-ricos), pipiras, sabiás, sanhaçus, saíras, tico-ticos, corruíras, gaviões, pombas, seriemas e tudo o mais.

Outras corujas

Cristina Rappa

A fêmea do mocho-dos-banhados, em Americana

Na minha fascinação por corujas, fui a Americana, na região de Campinas, avistar um casal de mochos-do-banhado (Asio flammeus), guiada por Gustavo Pinto, que tem desenvolvido um trabalho de conscientização da população local para que evite colocar fogo em terrenos onde a espécie faz ninho, além de se dedicar a reflorestar áreas, visando a manter habitat para a espécie.

E ainda não desisto de tentar avistar corujas em meu bairro em São Paulo. Quando, com tristeza, encontrei uma orelhuda (Asio clamator) morta, provavelmente por eletrocussão, caída na calçada bem embaixo da fiação, tive a certeza de que elas também estão por aqui, nos bairros mais arborizados da grande metrópole, onde parece não haver espaço para a vida silvestre, em meio a tanta poluição, especialmente sonora. Por quê se buzina tanto, meu Deus?!

Para finalizar, uma frase do nosso Guimarães Rosa: “ A coruja não agoura: o que ela faz é saber os segredos da noite”.

Conservação do condor-da-califórnia já dá resultado

Morguefile

Li recentemente que, pela primeira vez em muitos anos, a taxa de natalidade do condor-da-califórnia supera a de mortalidade dessas aves. Fiquei contente e recordei-me da palestra que assisti sobre essas que são as maiores aves de rapina do mundo, em viagem ao lado norte do Grand Canyon, nos Estados Unidos, em 2014. Pois, apesar do nome, é no Grand Canyon, no estado do Arizona, onde se concentra boa parte da população desses condores atualmente.

O que não é muito, já que não existem 300 exemplares dessas aves na natureza hoje – mas é grande coisa. Isso porque até o início dos anos 1980, sua população chegava ao preocupante número de 22 aves. O que levou os biólogos a tomar a decisão de capturá-los e criar um programa de reprodução em cativeiro, em santuários, como os zoos de San Diego, Los Angeles e Oregon, até chegar a um número com o qual seria seguro devolvê-los ao ambiente selvagem.

A decisão gerou muita polêmica e discussões, nos informou a palestrante, uma guarda florestal do parque, mas acabou se mostrando acertada. Há poucos anos, a população de condores “selvagens” (268) já superava a do grupo em cativeiro (167) e agora, pela primeira vez em décadas, nasceram mais aves em habitat natural do que morreram no ano passado, de acordo com o Fish & Wildlife Service dos Estados Unidos. Nasceram 14 condores contra 12 mortes, sendo que dessas, duas foram causadas por envenenamento por chumbo das balas das armas de caçadores.

Grande, careca e muito útil

California_CondorO condor-da-califórnia (Gymnogyps californianus) não é exatamente uma ave bonita. É grande e desengonçado e tem a cabeça careca. Mas, não por isso, deixa de ser considerado uma ave de rapina majestosa e fascinante. Com asas de quase três metros de envergadura, é a maior ave dos EUA e uma das maiores aves de rapina do mundo. Além do que, como outros abutres – vide o nosso urubu- desempenha um papel importante na limpeza do ecossistema, já que se alimenta de animais mortos.

A ave atinge sua maturidade sexual aos 6 anos de idade, e costuma seguir fiel e monogâmica ao encontrar um parceiro. Mas, como os papais condores levam mais de um ano para criar um filhote, a taxa de reprodução é extremamente baixa.

O condor costuma viver bastante e, quando não é ameaçado por caçadores, pode chegar aos 60 anos. Outra causa de declínio populacional é a perde habitat. Bom, neste caso, o problema não é exclusivo desta espécie, né?

Condores podem voar rápido e bem alto – a até 90 km/hora e acima dos 4 mil metros – e viajar cerca de 240 quilômetros por dia à procura de alimento. Dá para queimar bem as calorias antes da refeição, não?

Eu bem que tentei, mas não tive a sorte de avistar um condor sobrevoando o Grand Canyon. Além de lá, ele pode ser encontrado nos estados norte-americanos da Califórnia e Utah, além do norte da Baixa Califórnia, no México.

 

A má sorte dos talha-mar e trinta-réis

Parece clichê. Ou melhor, é. Mas a natureza tem seus caprichos e muitas vezes parece cruel e injusta. Também pode ser a mão do homem contribuindo para a mudança do clima e suas consequências, diriam outros.

O fato é que, depois de terem seus ovos comidos pelos gaviões caracarás – os famosos carcarás eternizados na voz de Maria Bethânia (“pega, mata e come”), no início da primavera de 2014, as fêmeas de talha-mar e trinta-réis-grande e pequeno resolveram se prevenir e mudaram totalmente a estratégia. Botaram os ovos na parte baixa da praia, bem mais próximos da margem do rio Negro, na área rural de Aquidauana, no pantanal sul-mato-grossense.

Cristina Rappa

Filhote de talha-mar em praia de rio

Talha-mar e trinta-réis são espécies de aves que habitam praias de grandes rios na Amazônia e no Centro-Oeste, e são normalmente confundidos com gaivotas. Costumam fazer ninhos em colônias, escavando um buraco na areia nessas praias no período da seca, quando as águas estão baixas e o calor é forte. A captura dos ovos pelo homem e sua predação por aves de rapina costumam ser as maiores ameaças a essas colônias.

Não é que a chuva adiantou neste ano e um aguaceiro fora de hora, no início de setembro, fez com que o nível do rio subisse, inundasse a praia e levasse embora os ovos? Mais um ano perdido. Que tristeza!

Como boa parte dos animais gosta de uma rotina e do seu lugarzinho preferido, os três casais continuam sua rotina de pesca, banho de sol e namoro na mesma praia do rio Negro.

Trinta reis acasalandoEntre os casais, a mais escandalosa é a fêmea do trinta-réis-grande, que fica gritando para o macho, como que pedindo peixe ou chamego. Paciente, ele, após suas voadas, traz comida na boca dela, a acalma e acasalam. Um ritual que se repete várias vezes ao longo do dia. Mas que neste ano não dará frutos, pois ovos, só uma vez por ano. Boa sorte em 2016, pessoal!

Procura-se um companheiro para o marreco

Não se sabe  – e nunca descobriremos – se ele tem mau hálito, não tem “pegada” ou se sua conversa é chata, mas o fato é que, apesar de bonito e majestoso, como um de seus nomes populares indica, o marreco-pompom, ou pato-real, que vive no açude da fazenda, no sul de Minas, está há mais de ano sem companhia.

Companhia fixa, dessas para formar família, vamos ser claros.

Aves - Marimbondo - Pata e marreco

Outras aves até aparecem de tempos em tempos. Já houve uma pata (à direita na foto acima, com o marreco), comprada junto com ele, por piedade, quando os dois foram vistos confinados em uma pequena gaiola na cidade vizinha, Mococa. Pareceram ser uma solução para alegrar o açude após a morte dos gansos, o que muito nos entristeceu. Além da dúvida: teriam sido mesmo os cachorros os carrascos dos pobres gansos?

Mas a pata, já em liberdade, logo atraiu a atenção de um pato selvagem que apareceu no açude e virou mãe de seis patinhos, selvagens como o pai.

Com o tempo, a família foi se mudando e restaram, por alguns meses, apenas dois dos patinhos, já adultos, que depois também se mudaram. Volúveis esses patos! Ter asas realmente proporciona um mundo de possibilidades.

Um mês depois que os derradeiros “patinhos” se mudaram, notamos a presença de uma ave diferente e linda. Pesquisa feita com grupo de especialistas em identificação de aves no Facebook, descobrimos que se tratava de uma ganso-do-Egito, espécie exótica que deve ter escapado de algum criador ou zoológico da região.

Enquanto eu lia os comentários no post (“não deixe que ele cruze com outra espécie”, “isso que dá criar espécies exóticas”, “capture-o e leve-o a um zoológico”, “deixe o animal em paz”…), o tal ganso estrangeiro já bateu asas e foi causar em outras paragens.

Aves - Marimbondo - garça branca grande no açude reduzida

Um mês mais tarde, volto a Arceburgo e observo, no açude, uma graça-branca-grande (acima), muito elegante, e um martim-pescador, que passaram a formar com o marreco um trio curioso. E bonito, justiça seja feita. Pareciam estar em tal harmonia que achei que dali não sairiam mais.

Qual o quê! Poucas semanas mais tarde, nada da garça (o martim-pescador, pelo menos, permanece, só tendo mudado de árvore), mas três coró-corós muito simpáticos – ou simpáticas? – ciscando nas margens do açude e pousando nos galhos na sua margem.

E o marreco lá, no meio, nadando para lá e para cá, torcendo provavelmente por uma companhia mais compatível com a sua espécie da próxima vez. Será que ele terá sorte?

Cristina Rappa é jornalista, profissional de Comunicação Corporativa e, de uns tempos para cá, tem se dedicado a escrever livros infantojuvenis e crônicas sobre animais e outros seres vivos.